terça-feira, 26 de junho de 2018

Fases da lua


Ó lua que estás tão cheia
de crateras e luz fria
que fizeste tu do quarto
onde o homem se escondia?


quinta-feira, 21 de junho de 2018

Tudo se transforma



O tubo com duas asas
já estremece no ar
fecho os olhos e quando os abro
só há nuvens como chão
e um motor a roncar


depois lá ao fundo rios
e eu a rir-me de mim


para que o coração não pare
em tamanha agitação
primo valente o botão
disparo sobre disparo fica
ao rubro a minha mão


lagos esverdeados
que a terra gretada engole
rochas cobertas de neve
eis o reino mineral
porquê tantos cuidados
este medo irracional ?


terça-feira, 12 de junho de 2018

Santos surreais



Não chamo por Sto António
nem clamo por São João
quando vem o tal demónio
que baila na minha mão.


Tinha muito pra dizer
mas aquilo que não digo
fica no ar a ferver há de
queimar-vos o umbigo.

domingo, 10 de junho de 2018

A sua mais extensa canção


     CANÇÃO X (excertos)


Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
(…)
Já me desenganei que de queixar-me
não se alcança remédio; mas, quem pena,
forçado lhe é gritar, se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
a voz para poder desabafar-me,
porque nem com gritar a dor se abrande.
(…)
Foi minha ama ua fera, que o destino
não quis que mulher fosse a que tivesse
tal nome para mim; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
o veneno amoroso, de minino,
que na maior idade beberia,
e, por costume, não me mataria.
(…)
Que género tão novo de tormento
teve Amor, que não fosse, não somente
provado em mim, mas todo executado?
(…)
Pois quem pode pintar a vida ausente,
com um descontentar-me quanto via,
e aquele estar tão longe donde estava,
o falar, sem saber o que dezia,
andar, sem ver por onde, e juntamente
suspirar sem saber que suspirava?
(…)

(…) enfim, eram remédios que fingia
o medo do tormento que ensinava
a vida a sustentar-se, de enganada.
Nisto ua parte dela foi passada,
na qual se tive algum contentamento
breve, imperfeito, tímido, indecente,
não foi senão semente
de longo e amaríssimo tormento.
(…)
Dest'arte a vida noutra fui trocando;
eu não, mas o destino fero, irado,
que eu ainda assi por outra não trocara.
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
passando o longo mar, que ameaçando
tantas vezes me esteve a vida cara.
Agora, exprimentando a fúria rara
de Marte, que cos olhos quis que logo
visse e tocasse o acerbo fruto seu
(e neste escudo meu
a pintura verão do infesto fogo);
agora, peregrino vago e errante,
vendo nações, linguages e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
só por seguir com passos diligentes
a ti, Fortuna injusta, que consumes
as idades, levando-lhe diante
üa esperança em vista de diamante,
mas quando das mãos cai se conhece
que é frágil vidro aquilo que aparece.
(…)
Que segredo tão árduo e tão profundo:
nascer para viver, e para a vida
faltar-me quanto o mundo tem para ela!
E não poder perdê-la,
estando tantas vezes já perdida!
Enfim, não houve transe de fortuna,
nem perigos, nem casos duvidosos,
injustiças daqueles, que o confuso
regimento do mundo, antigo abuso,
faz sobre os outros homens poderosos,
que eu não passasse, atado à grã coluna
do sofrimento meu, que a importuna
perseguição de males em pedaços
mil vezes fez, à força de seus braços.
(…)
Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre, e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo, e o pão que como,
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.

(…) Ah! vãs memórias, onde me levais
o fraco coração, que ainda não posso
domar este tão vão desejo vosso?

Nô mais, Canção, nô mais; que irei falando,
sem o sentir, mil anos. E se acaso
te culparem de larga e de pesada,
não pode ser (lhe dize) limitada
a água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
co gosto do louvor, mas explicando
puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!

Luís Vaz de Camões,(1524?-1580)

 

sábado, 9 de junho de 2018

Participar



Porque a vida
Não é um espetáculo
Porque um mar de dores
Não é um proscénio
Porque um homem que grita
Não é um urso que dança

Aimé Césaire, França-Martinica
        (1913-2008)




sexta-feira, 8 de junho de 2018

Tanka e tatoo



A aldeia do monte
poderá ser solitária…
Mas viver aqui
é mais fácil do que habitar
entre os desgostos do mundo.

Ono No Komachi, Japão (834?-?)



quarta-feira, 6 de junho de 2018

Acaso mui objetivo



- Mais uma pedra solta na calçada,
    pensou pouco concentrada
- falta a batata para ter sopa...
    e pousou o saco pesado
na soleira do prédio desabitado
onde um tubérculo jazia sem
esperança de ser aproveitado.