CANÇÃO X (excertos)
Vinde
cá, meu tão certo secretário
dos
queixumes que sempre ando fazendo,
papel,
com que a pena desafogo!
(…)
Já
me desenganei que de queixar-me
não
se alcança remédio; mas, quem pena,
forçado
lhe é gritar, se a dor é grande.
Gritarei;
mas é débil e pequena
a
voz para poder desabafar-me,
porque
nem com gritar a dor se abrande.
(…)
Foi
minha ama ua fera, que o destino
não
quis que mulher fosse a que tivesse
tal
nome para mim; nem a haveria.
Assi
criado fui, porque bebesse
o
veneno amoroso, de minino,
que
na maior idade beberia,
e,
por costume, não me mataria.
(…)
Que
género tão novo de tormento
teve
Amor, que não fosse, não somente
provado
em mim, mas todo executado?
(…)
Pois
quem pode pintar a vida ausente,
com
um descontentar-me quanto via,
e
aquele estar tão longe donde estava,
o
falar, sem saber o que dezia,
andar,
sem ver por onde, e juntamente
suspirar
sem saber que suspirava?
(…)
(…)
enfim, eram remédios que fingia
o
medo do tormento que ensinava
a
vida a sustentar-se, de enganada.
Nisto
ua parte dela foi passada,
na
qual se tive algum contentamento
breve,
imperfeito, tímido, indecente,
não
foi senão semente
de
longo e amaríssimo tormento.
(…)
Dest'arte
a vida noutra fui trocando;
eu
não, mas o destino fero, irado,
que
eu ainda assi por outra não trocara.
Fez-me
deixar o pátrio ninho amado,
passando
o longo mar, que ameaçando
tantas
vezes me esteve a vida cara.
Agora,
exprimentando a fúria rara
de
Marte, que cos olhos quis que logo
visse
e tocasse o acerbo fruto seu
(e
neste escudo meu
a
pintura verão do infesto fogo);
agora,
peregrino vago e errante,
vendo
nações, linguages e costumes,
Céus
vários, qualidades diferentes,
só
por seguir com passos diligentes
a
ti, Fortuna injusta, que consumes
as
idades, levando-lhe diante
üa
esperança em vista de diamante,
mas
quando das mãos cai se conhece
que
é frágil vidro aquilo que aparece.
(…)
Que
segredo tão árduo e tão profundo:
nascer
para viver, e para a vida
faltar-me
quanto o mundo tem para ela!
E
não poder perdê-la,
estando
tantas vezes já perdida!
Enfim,
não houve transe de fortuna,
nem
perigos, nem casos duvidosos,
injustiças
daqueles, que o confuso
regimento
do mundo, antigo abuso,
faz
sobre os outros homens poderosos,
que
eu não passasse, atado à grã coluna
do
sofrimento meu, que a importuna
perseguição
de males em pedaços
mil
vezes fez, à força de seus braços.
(…)
Mas
a fraqueza humana, quando lança
os
olhos no que corre, e não alcança
senão
memória dos passados anos,
as
águas que então bebo, e o pão que como,
lágrimas
tristes são, que eu nunca domo
senão
com fabricar na fantasia
fantásticas
pinturas de alegria.
(…)
Ah! vãs memórias, onde me levais
o
fraco coração, que ainda não posso
domar
este tão vão desejo vosso?
Nô
mais, Canção, nô mais; que irei falando,
sem
o sentir, mil anos. E se acaso
te
culparem de larga e de pesada,
não
pode ser (lhe dize) limitada
a
água do mar em tão pequeno vaso.
Nem
eu delicadezas vou cantando
co
gosto do louvor, mas explicando
puras
verdades já por mim passadas.
Oxalá
foram fábulas sonhadas!
Luís
Vaz de Camões,(1524?-1580)