sábado, 6 de abril de 2024

«Um rio morre de sede»


Havia aqui um rio

que tinha duas margens

e uma mãe celestial que o nutria com gotas das nuvens

Um pequeno rio que corria lento

descendendo do cume das montanhas

visitando aldeias e tendas como um encantador e jovial convidado

trazendo para o vale oleandros e tamareiras

e rindo-se para os boémios noturnos nas suas margens:

«Bebam o leite das nuvens

e deem de beber aos cavalos

e voem para Jerusalém e Damasco»

A uns, cantava heroicamente

a outros, apaixonadamente

Era um rio com duas margens

e uma mãe celestial que o nutria com gotas das nuvens

Mas raptaram-lhe a mãe

e, porque de água privado,

morreu, lentamente, de sede.

 

Mahmoud Darwich, Palestina (1941-2008)

       (tradução, da v. ingl., de Manuel A. Vieira)


 

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

«Bastou-me ficar nos seus braços»

Bastou-me morrer nos seus braços
 ser ali enterrada
 dissolver-me sob o seu lodo e
 desaparecer renascer erva no seu solo
 e renascer flor que a mão duma criança medrada
 no meu país vai apanhar
 bastou-me permanecer no seio do meu país
 como terra e erva e flor

  Fadwa Tuqan, Palestina, (1917-2003)

      (tradução de Maria Paiva)

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Guerras 4

… Aquele pequeno orifício, que fica depois da bala ter atravessado, esvaziou-me dos meus conteúdos, tudo fluiu gentilmente, memórias, nomes de amigos, vitamina C, canções de casamentos, o dicionário árabe, a temperatura de 37 graus ácido úrico, os poemas de Abu Nuwas, e o meu sangue. Quando a alma começa a escapar pelo pequeno portão aberto pela bala, as coisas tornam-se mais claras, a teoria da relatividade torna-se algo evidente, equações matemáticas que eram vagas tornam-se matéria simples, voltamos a lembrar os nomes de colegas da escola esquecidos, a vida é subitamente iluminada em perfeito detalhe, o quarto de infância, o leite da mãe, o primeiro orgasmo trémulo, as ruas do campo, um retrato de Yasser Arafat, o cheiro do café com cardamomo dentro de casa, o som da chamada à oração da manhã, Maradona no México em 1986, e tu. 


   Ghayath Almadhoun, Palestina-Síria, 1979

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Transparecer

 

Carlota Monjardino, Ilha ao longe



Visitas/ Exposição

 

Ilha ainda longe

lenta descida

   na vertical

vento forte cinza e sal

cerrar dos olhos

medo soez

Pés na terra

tons de verde

a triplicar desta vez

névoa nos campos colinas

azul no céu e no mar

baía praia prainha

sombra crepuscular

farol planos de luz

camadas espessas ou finas

traços pontos linha

outra ilha se adivinha

e sublime transparece

em tela madeira tecida

tule rede filtração

paisagem preservação

sintética e solúvel tinta

cor contornos ondulação

falta a sublime giesta que

embalsamou Brandão.






quinta-feira, 20 de julho de 2023

«Polémica»

 

Concordo inteiramente com o que dizes.
Quando as nuvens e as palavras se separam
O ar estremece e o cosmos fragmenta-se.
Enquanto não se conhecer a intenção
Nenhum caminho será descoberto.
A Índia era pó, um leopardo à sombra de uma pedra.
Cheguei à entrada da cidade
E aí estava ela, branca, à luz do sol.

As paisagens são absurdas enquanto não se aceitam.
Salaamed humedeceu os lábios e colou-os ao pó.
Ele é o vale e o vale é ele.
Mas até à morte negar-te-ei o direito de o dizer.

Paul Bowles, EUA, 1910-1999

(traduzido por José Agostinho Baptista)

domingo, 18 de junho de 2023

De rabos e de peixes- Rabo de Peixe contado às crianças

Isto não é Rabo de Peixe

 

  Rabo- rede das armações de pesca fixas que se dirige para o lado da terra;

       Rabo- pode também ser um apêndice, acrescentamento; suplemento.

 

Era uma vez alguns rabos de saia e muitos rabos de lagartixa naturais de uma vila esquecida de um mundo pequeno que ouviam, com uma evidente dose de impaciência, diversos pregadores vindos de fora. Embora se tivessem habituado aos rabos de palha que frequentemente lhes atribuíam, sabiam bem que não eram propriamente peixe podre! Os companheiros e pais dos indivíduos atrás referidos estavam ocupados a puxar as redes em barcos geralmente alugados, sob a proteção de santos da casa, ou do continente que raramente fazem milagres e se quedavam mudos, como os peixes que os homens e os rapazes mais crescidos queriam apanhar, e que o mar e os rabos de ciclone nem sempre permitiam.

Quando se vive assim, não se espantem se tudo o que vier à rede, for considerado peixe; se na faina, e nos rabos para sustentarem as famílias numerosas, alguns fossem para os peixinhos!...

Depois de um acontecimento maior que abalou o quotidiano pouco pacato da comunidade piscatória e da ilha toda, alguns apressaram-se a declarar nada ter a ver com esse peixe/negócio graúdo; outros, que estariam a dormir, que apenas o venderam pelo preço que o compraram.

 Pessoas vagamente desconhecidas, que teriam o rabo pelado ou talvez não, propuseram à população realizar uma série que, como o caranguejo e no bairro com este nome, teria por tema o acontecimento-tabu. As opiniões dividiram-se, instalou-se a controvérsia, tendo os proponentes metido por algum tempo o rabo entre as pernas.

A série estreou, a polémica de novo estoirou, estendendo-se até ao país. Parece que tem sido um sucesso no grande mundo que se deu conta da existência de uma vila, situada numa das ilhas do arquipélago-maravilha, onde in illo tempore um anticiclone proporcionava o bom tempo a grande parte do continente europeu.

Serão felizes de hoje em diante, e/ou para sempre? Esperemos para ver.

 "Não queremos mais turismo, já temos que chegue. Queremos é mudar o que está mal, ajudar as pessoas que precisam. Não percebo nada de política ou gestão. Sei tocar viola e cantar. Mas acho que o que era preciso era ajudar as pessoas, dar cultura às pessoas, dar-lhes acesso a educação e saúde", pediu Romeu Bairos músico e ator na série.

 Rapazim de Rabo de Peixe? Muito provavelmente.

 

https://www.youtube.com/watch?v=wcFjN_pK4Wo