sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Do lixo e das romãs que dançam




LIXO
De origem controversa ou mesmo obscura, ainda não há fonte segura para a origem deste vocábulo que, curiosamente, parece estar associada à presença da água…
«Cinza ou água misturada com cinza; água de lavar ou de coagem;»« servidor do exército, cantineiro (pop); vil» - da mescla ter-se-ia obtido: «água ou objecto sujo; acto carnal sujo»


Onde páram os humanos, ele acumula-se. Que seria daqueles que o produzem, sem o trabalho «dos homens e das mulheres do lixo» que, ruidosa e regularmente, o recolhem, de manhã e de madrugada?
No entanto, nem todos os produtores de resíduos reconhecem a importância desses colectores e, muitos menos ainda, se preocupam com o aumento dos «recolectores forçados», desses «bichos» que sobrevivem do lixo.

Melhor seria ficarmos atentos, para descobrimos outros, de domínio vocabular e sintáctico semelhante, os homens de lixo, uma companhia anónima instalada perto de nós, que não só é a mais directa responsável pela cultura intensiva de detritos inúteis como, se pudesse, «limparia o sebo» «aos bichos que catam no lixo».

 O Bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira, br (19/4/1886-13/10/1968)




9. entre contentores de lixo
Às vezes, quando estou a tentar dormir, ouço uns rumores imperceptíveis misturados com a noite de todos os gemidos. Há muita gente que anda assim, gente que circula entre contentores de lixo, à espera da reciclagem das almas, num exercício pragmático da fome.
António Ferra, Estação suspensa, Europress, Lda

À minha janela, de dia e à noite, sonho com ela- sei que nunca
      a colherei 
                    mas ao vê-la  assim
                              redonda rubra ou amarela
a vida para mim é bem mais bela...

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Petit train de vie


Tenho uma folha branca
       e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
        e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
      e limpa à minha espera.


Ana Cristina César, br (2/06/1952-29/10/1983)




quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Crianças

[A criança, quando criança, caminhava de braços caídos, queria que o ribeiro fosse um rio, o rio uma torrente e este charco, o mar. A criança, quando criança, não sabia que era criança, tudo para ela tinha alma e todas as almas eram uma só. A criança, quando criança, não tinha opinião sobre nada, não tinha hábitos, sentava-se de pernas cruzadas e de repente desatava a correr, tinha um redemoinho no cabelo e não fazia caretas quando era fotografada.
 in As Asas do Desejo, Wim Wenders e Peter Handke]







terça-feira, 28 de outubro de 2014

Coordenada copulativa sindética




(…)« e se um dia hei-de ser pó

         e
cinza

          e
nada

que seja a minha noite

                              uma alvorada


que me saiba perder»
                                 e encontrar.


      Florbela- desviante



segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Homem por aproximação: Tzara/Dada

(...) je parle de qui parle qui parle je suis seul
je ne suis qu’un petit bruit j’ai plusieurs bruits en moi
un bruit glacé froissé au carrefour jeté sur le trottoir 
  humide
aux pieds des hommes pressés courant avec leur 
  morts 
autour de la mort qui étend ses bras
sur le cadran de l’heure seule vivante au soleil


le souffle obscur de la nuit s’épaissit
et le long des veines chantent les flûtes marines
transposées sur les octaves des couches de diverses
  existences
les vies se répètent à l’infini jusqu’à la maigreur
  atomique
et en haut si haut que nous ne pouvons pas voir 
et avec ces vies à côté que nous ne voyons pas
l’utltra-violet de tant de voies parallèles
celles qui nous aurions pu prendre
celles par lesquelles nous aurions pu ne pas venir au 
  monde
ou en être déjà partis depuis longtemps si longtemps
qu’on aurait oublié et l’époque et la terre qui nous 
  aurait sucé la chair
sels et métaux liquides limpides au fond des puits


je pense à la chaleur que tisse la parole
autour de son noyau le rêve qu’on appelle nous (...)

Tristan Tzara, L'Homme approximatif, (excerto)
 Éd. Gallimard


domingo, 26 de outubro de 2014

Outro Fado


As Palavras (Fado Paço d’ Arcos)
São as palavras que eu digo
Meu abismo e meu abrigo
Partilha de pão e espanto
Lucidez que desatina
Chão sagrado onde germina
A semente do meu canto
Palavras a que eu entrego
Prazer e desassossego
Tormento e consolação
A quem pergunto e respondo
Quando me exponho e me escondo
Entre a crença e a razão
Palavras que reinvento
Meu desafio e sustento
Pedras de luz e de lodo
Companheiras do caminho
Maneiras de eu estar sozinho
Abraçando o mundo todo
Palavras que só mereço
Se em troca do que lhes peço
Der tudo o que posso dar
Se um dia as não merecer 
Que as não consiga dizer
E que eu deixe de cantar

Manuela de Freitas (letra) 
José Mário Branco (música)

 Camané (voz)
                              in « Sempre de mim»
Nota:faixa não disponível no «youtube»...

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Cidade: dizer, ver e ser ouvido...


 Digo:
"Lisboa"
Quando atravesso - vinda do sul - o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do meu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas -
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
- Digo para ver 



Sophia de M B Andresen
Lisboa


EU ONTEM OUVI-TE...

Andava a luz
Do teu olhar,
Que me seduz
A divagar
Em torno a mim.
E então pedi-te,
Não que me olhasses,
Mas que afastasses,
Um poucochinho,
Do meu caminho,
Um tal fulgor
De medo, amor,
Que me cegasse,
Me deslumbrasse,
Fulgor assim. 
                           Ângelo de Lima
                   (30/7/1872-14/8/1921)








Nos 129 anos do Elevador da Glória

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Cura-pardais-história aos quadradinhos para montar e finalizar





Impossibilitada de voar,
 uma fêmea-pardal atemorizada saltita










                                   A Maria não é daqui,
                                            faz reiqui  e logo se apoquentou
                                 «Ai o pobre 



                                      passarinho! Deixe pô-lo em minha mão!
   Vou chamar dona Lurdi
nhas que tem muitas avezinhas e 1grande coração!» Chegou

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Visitantes noturnas


Maio é o tempo da cereja, da rubra e da quase negra que, carnudas, enchem de consolo os viventes. 
Será Outubro a época da libelinha?! No cálido da noite irrompem, encarnadas, pela janela da cozinha e... nem vento tinha! 

«Tierra de Luz»






















domingo, 19 de outubro de 2014

Cambraia e veludo



                                                                              Dylan Thomas

sexta-feira, 17 de outubro de 2014


Ser lagarto


          Os lagartos ao sol

Expõe ao sol a perna escalavrada,
no Jardim do Príncipe Real,
uma velha inglesa. Não há nada
tão bonito (pra mim), so natural.
  
E conversamos: "Helioterapia
medicina barata em Portugal."
Accionista do sol, ajudo à missa:
"But, não muito, que senão faz mal."
            
Gozosos, eu e a velha, ali ficamos
à mercê de meninos e marçanos.
Ela, a inglesa, de perninha à vela;
e eu, o português, à perna dela.
    
Talvez que, se Briol nos conservara,
alguém um dia nos ajardinara.                  
                                                                          Alexandre O'Neill

   

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Sair de si



Extase

Argentin brasier, braise creusée
Avec la musique de son intime force
Braise évidée, délivrée, écorce
Occupée à livrer ses mondes.


Recherche épuisante du moi
Pénétration qui se dépasse
Ah! joindre le bûcher de glace
Avec l'esprit qui le pensa.


La vieille poursuite insondable
En jouissance s'extravase
Sensualités sensibles, extase
Aux cristaux chantants véritables.


Ô musique d'encre, musique
Musique des charbons enterrés
Douce, pesante qui nous délivre
Avec ses phosphores secrets. 


           Antonin Artaud

       

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Cadeiras

        esta é uma cadeira
só uma cadeira
nela
sentou-se meu pai
meus irmãos
todos
os meus melhores amigos
agora
está sozinha
sem ninguém
uma cadeira.


Reinaldo Pérez Só, Venezuela (1945)

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Ragas que reflorestam

Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e aguentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.

A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.

Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.


Rabindranath Tagore, Índia (7/05/1861-7/08/1941)








domingo, 12 de outubro de 2014

«Grenadine»



                                                   
                                             Abro a janela:
                                       flores de romãzeira
        perfumam a música que respiro na noite chuvosa.
       em breve o fogo translúcido
                           da romã