domingo, 28 de maio de 2023

Pessoas há que...

 

O lirismo pessoal é o clamor do prisioneiro para o prisioneiro da cela

solitária em que cada um está confinado enquanto durarem as suas vidas.


      Tennessee Williams, prefácio a Cat in a hot tin roof


 

HÁ PESSOAS CUJOS cabelos a dor

embranquece de um dia para o outro

e pessoas que morrem um mês

uma semana depois de finadas

as pessoas que adoram

e ouvi mesmo falar de um cão cuja

vida acabou debaixo

do caixão de seu dono

Não vejo como algo

assim poderia acontecer comigo:

é pelas beiradas

(como tudo)

que a dor me come.

 

Simone Brantes, Brasil, 1963

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Dia de África

 

«O espírito de África toma sempre a forma de um elefante.

 Porque o elefante não pode ser vencido por nenhum animal.

 Nem pelo leão, nem pelo búfalo, nem pela serpente».

             palavras de um tanzaniano


Ryszard Kapuscinski, in Ébano



quarta-feira, 17 de maio de 2023

Vento

Como não te posso vencer

vou contigo na viagem

 

 

A ventania fustiga a nogueira

São mais as vozes

     do que as nozes

 

Esgueirando-se por entre as folhas

o vento murmura

         marulha

 

Papagaios de papel

retalhos de cor e laços

      ondulando

sobre fundo azul pálido



 

domingo, 14 de maio de 2023

Toupeiras

 

Pequenos e enérgicos habitantes de outro espaço e de um tempo outro, escavam túneis no subsolo 4 horas a fio, para morarem e armazenarem alimento; depois param e adormecem, embalados pelo ritmo que, em surdina, acrescentam à lira do Trácio.

Dormem, cada qual em sua galeria, em cama própria, fechando os olhos que pouco veem; então, todo ouvidos, seguem em sonhos Orfeu, tréguas dando ao pelo que lhes protege o corpo cilíndrico, ao focinho e à cauda cujas vibrissas os orientam na caça e, sobretudo, aos dentes, sem os quais morreriam porque precisam de comer muito.

 Misteriosos, só se mostram na primavera para acasalarem, ou por obra do acaso.

 Aos dois meses, quando deixam o berçário, os filhotes partem, por seu turno, à descoberta de um lugar subterrâneo só para eles, onde comida e sossego abundem. Continuarão a azáfama dos progenitores que, para nós, se pensarmos um pouco, consiste também em construir compridos canais por onde a chuva penetra lentamente no solo; ao mesmo tempo revolvem e arejam as profundezas, das quais retiram terra paus raízes que vêm modelar e revestir de novas camadas e de formas inusitadas a geometria convencional do nosso território.

Vivem cerca de 4 anos- apenas. Enquanto fazem, vivem- amaldiçoados. Parecem-se com quem?




terça-feira, 9 de maio de 2023

«A toupeira»

 

E esta, porque vive,

porque se afirma

se vive enterrada

na lama

 

revolvendo paus, turfa,

sons

nas órficas árias?

 

Ela é dos subterrâneos,

o mineiro que vive com

 

Maria, a rainha dos escoceses,

Anne Sexton, alguns imortais,

 

e não tarda comigo-

brincaremos aos zombies

 

fugiremos de gambás,

diremos - que diabo!

em grutas e galerias:

 

ensinar-me-á como

viver morrendo.

 

Daniel Jonas, 1973