domingo, 30 de abril de 2017

Parênteses e hesitação


...como se o campo/canto recompusesse
           o corpo agonizante dos sonhos
                    que o bulício invalidou...


sábado, 29 de abril de 2017

.../ fingir que é dor.../...

 intervenção sobre um trabalho de Bárbara Sereno
Fingimentos poéticos

Faz-me falta a tristeza
 para o verso:
 falta feroz de amante,
 ausência provocando dor maior.

Tristeza genuína, original,
 a rebentar entranhas e navios
 sem mar.
 Tristeza redundando em mais
 tristeza, desaguando em métrica
 de cor. (...)


Ana Luísa Amaral, (1956)


quinta-feira, 27 de abril de 2017

Recanto(s)


RECANTO 2

Viver, entretanto, é ver, ir vendo
 e também ver inclui dormir
 sem que nada se desfaça ou exclua
 no interior dos sonhos.

Pensemos no comércio de viver: passagem dos navios
 quando, a passar, se retém a espessa
 água do tempo, da tempestade.

Um comércio, apenas - desvio da moeda
 da trajectória do ouro
 para o papel.

Sempre viver incluiu andar percorrer voar
de avião ou com os braços ou num ser demais
 rodas que nos conduza
 a outro sentido ambulatório.


Luiza Neto Jorge (1939-1989)

intervenção sobre um trabalho de Bárbara Sereno

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Revolução (2017)



Fim de um ciclo  de um período de tempo
agitação insurreição
 rebelião revolta  sublevação
alteração brusca  
mudança súbita
- modificação profunda,
  transformação completa?
golpe no estar?
- um ciclo de alegria breve,
  apreender o novo
ser com os outros


domingo, 23 de abril de 2017

Medos: «aqui há gato...»


                             I
 Para quem mora na cidade e vive uma vida protegida
 Ainda há possíveis aventuras
 Para aqueles que têm medo.

Só para esses.

Só para esses é que a vida ainda pode ser perigosa,
 Aventurosa,
 Venturosa.

 Medos são numerosos, é só escolhê-los,
 Amá-los, não tentar vencê-los.
 Pegar num e fazer o contrário do que é costume:
 Acarinhá-lo, envolvê-lo em algodão       digamos que
 Incubá-lo,
 Fazê-lo nascer lindo e brilhante,
 Dar-lhe um lugar na nossa mesa    na nossa cama   nos nossos sonhos.
 Um medo assim,
 Muito amado,
 Há-de ser a nossa salvação.
                   (...)


Sara Monteiro  in Uma volta pela cidade



sábado, 22 de abril de 2017

«Pouvoir»


desenho de Man Ray
POUVOIR

Il la saisit au vol
L’empoigne par le milieu du corps
La ceinturant de ses doigts robustes
Il la réduit à l’impuissance

Vertige la main dominante
Couvre toutes les distances
Sans plus bouger que sa proie.


Paul Éluard, França (1895-1952)


PODER
              
 Rapace arrebata-a
 Agarra-a-a pelo meio do corpo
 Cingindo-a com os dedos robustos
 Redu-la à impotência

Vertigem a mão dominadora
Cobre todas as distâncias
Só se agita a sua presa.

      (a tradução é minha) 


sexta-feira, 21 de abril de 2017

Era uma vez...


era uma vez um homem com um bico de pássaro
no lugar do nariz. na idade em que os outros
meninos aprendem a ler, tentara ele aprender
a voar. mas como não era um pássaro autêntico,
mas apenas um menino com bico de pássaro.
deu muito trambolhão.
lá de cima, riscando o céu, os pássaros-só-pássaros
riam-se dele e os homens-só-homens,
cá em baixo, um nariz entre os olhos
e um olhar muito sério.
observavam-no com desconfiança.

    e ele esvoaçava

esvoaçava

e caía

e caía                       ava

e esvoaç


Jaime Salazar Sampaio (1925-2010)




quarta-feira, 19 de abril de 2017

Crianças e pirilampos


Canção Infantil

Hotaru kõe midzu nomashõ
 Achi no midzu wa nigaizo
 Kochi no midzu wa amaizo

Vem, pirilampo, matar a tua sede.
 A água daí amarga;
 Aqui a água é doce.

  (a versão é minha)




          A criança perdida
 que chora chora
       mas corre atrás dos pirilampos

        Ryusûi, Japão (s/d)


   (tradução, do francês, feita por mim) 




segunda-feira, 17 de abril de 2017

Rotas


Que rota é esta que nos desvia
 ao longo da qual o pensamento
 se transvia
uma flor em cada pé  ponto
de partida  pé de flor?
- no fim da rota o desamor.


domingo, 16 de abril de 2017

Glória


Não; não é por ser Páscoa.
É que a música tradicional- "o povo que ainda canta"- ressuscita, pouco a pouco, com roupas novas, electrizantes... que boas ideias, concretizando-se, andam por aí!



            Mulheres  plantando arroz-
  nelas tudo é sujo
           menos o seu canto


      Raizan, Japão ( 1654- 1716)

            (a tradução, do francês, é minha)

sexta-feira, 14 de abril de 2017

As coisas aparentemente simples


Las simples cosas

 Uno se despide insensiblemente de pequeñas cosas,
 Lo mismo que un árbol  que en tiempo de otoño muere por sus hojas.
 Al fin la tristeza es la muerte lenta de las simples cosas,
 Esas cosas simples que quedan doliendo en el corazón.

 Uno vuelve siempre a los viejos sitios donde amó la vida,
 Y entonces parece como estando ausentes las cosas queridas.
 Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,
 Que el amor es simple, y a las simples cosas las devora el tiempo.

 Demorate aquí, en la luz mayor de este mediodía,
 Donde encontrarás con el pan al sol la mesa tendida.

 Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,
 Que el amor es simple, y a las simples cosas las devora el tiempo.


 Concha Buika




Presente



Eis-me aqui
 ainda aqui
 procurando sempre
 as palavras certas
 as felizes
 feliz já
 na indagação do mistério
 de existir
 sem o pão e a água
 inebriante apenas
 o som do que não pôde crescer

 mas foi.


quarta-feira, 12 de abril de 2017

Sobre homicídios consentidos




...  Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objeto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena, in Carta a meus filhos sobre os

             fuzilamentos de Goya (excerto final)




domingo, 9 de abril de 2017

Mutismo


Mental Statement

Me voici pour témoigner
du non-avènement
d’un monde
qui commençait
 juste

 à naître.




sábado, 8 de abril de 2017

Achamento


2.
A ilha ninguém achou
porque todos o sabíamos.
Mesmo nos olhos havia
uma clara geografia.
Mesmo nesse fim de mar
qualquer ilha se encontrava,
mesmo sem mar e sem fim,
mesmo sem terra e sem mim.
Mesmo sem naus e sem rumos,
mesmo sem vagas e areias,
há sempre um copo de mar
para um homem navegar.
Nem achada e nem não vista
nem descrita nem viagem,
há aventuras de partidas
porém nunca acontecidas.
Chegados nunca chegamos
eu e a ilha movediça.
Móvel terra, céu incerto,
mundo jamais descoberto.

Indícios de canibais,
sinais de céu e sargaços,
aqui um mundo escondido
geme num búzio perdido.
Rosa-de-ventos na testa,
maré rasa, aljofre, pérolas,
domingos de pascoelas.
E esse veleiro sem velas!
Afinal: ilha de praias.
Quereis outros achamentos
além dessas ventanias
tão tristes, tão alegrias?


Jorge de Lima, Brasil
(trecho de Invenção de Orfeu)


Em louvor da proximidade


 Uma noite, muito noite
 muito branca
 sem idade e
 um contorno claro-escuro
 tão real na proximidade

Um almoço para quê
bem pequeno um café,
se a casa muito grande
 está cheia de estranhos

 a  pé?


quarta-feira, 5 de abril de 2017

Caparica: sol para os «tesos»


VERDES ANOS 

Era o amor
Que chegava e partia
Estarmos os dois
Era um calor, que arrefecia
Sem antes nem depois
Foi o tempo que secou
A flor que ainda não era
Como o outono chegou
No lugar da primavera

No nosso sangue corria
Um vento de sermos sós 
Nascia a noite e era dia
E o dia acabava em nós



Era um segredo
Sem ninguém para ouvir
Eram enganos e era um medo
A morte a rir
Dos nossos verdes anos

Pedro Tamen/ Carlos Paredes


terça-feira, 4 de abril de 2017

Sonho mau



Olho para os degraus,
  olho e os degraus multiplicam-se,
    olho e os degraus...

Proliferam os degraus,
  crescem mais íngremes,
     crescem e depois...


Luna & Onitsura (1660-2017)


 

segunda-feira, 3 de abril de 2017

«Body and Soul»

Maria Beatriz


Body and Soul

O medo é um sinal na pele & pelas costas
 incompreensível um buraco que entra no
 coração e o atravessa um negrume o re
 trocesso até à infância o medo é a mãe de
 todas as coisas de que a guerra é pai à
 trajectória do projéctil chamam alma dizem
 soldados nesta língua toda a arma de fogo
 tem a sua função a vida da alma é um vá
 cuo um canal ferido  é o medo entre as omo
 platas quando lhe voltas costas ele atinge-te


Barbara Kohler, Alemanha (1959)


domingo, 2 de abril de 2017

Rosas



AS ROSAS

Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.



Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 1 de abril de 2017

O tempo


CORO DE CINCO   Não sabemos o que seja o tempo.
                                 Ele passa, enterra, desenterra,
                                 Agita, enreda, remexe, revolve
                                 E passa.
                                 Em querendo medi-lo
                                 Melhor seria pesar o vento
                                 Ele passa, enterra, desenterra,
                                 Enreda, remexe, agita, revolve
                                 E passa.


              Luísa Costa Gomes, (1954) in O Céu de Sacadura - teatro