domingo, 26 de abril de 2020

Mãos que se movem



(…) Não morrer
 não morrer ainda
 não demasiado cedo
 a faca o veneno, cedo demais
 ainda gosto de mim.
 gosto das minhas mãos que fumam
 que escrevem
 Que seguram o cigarro
 A caneta
 O copo
 Gosto das minhas mãos que tremem
 que limpam apesar de tudo
 que se movem
 Onde as unhas ainda crescem
as minhas mãos voltam a pôr os óculos no
 sítio
  para que eu escreva.

Ágota Kristof, Hungria (1935-2011)
(tradução do francês feita por mim)

sábado, 25 de abril de 2020

Eu/Tu



 TO FINDING AGAIN

 Everything else must have changed
 must be different
 by the time you appear
 more than ever the same

 taking me by surprise
 in my difference
 my age
 long after I had come
 to the end
 of believing in you
 to the end of hope
 which was not even
 the first of the changes

 when I imagined
 that I was forgetting you
 you did not even need memory
 to remain there
 letting the years vanish
the miles depart

 nothing surprising in that

 even longing
 does not need memory
 to know what to reach for

 and nothing surprises you
 who were always there
 wherever it was

 beyond belief

W.S. Merwin, EUA (1927-2019)




Inquietação



sexta-feira, 24 de abril de 2020

Um dia


            UN JOUR


Un jour

Il y aura autre chose que le jour

Une chose plus franche, que l’on appellera le Jodel

Une encore, translucide, comme l’arcanson

Que l’on s’enchâssera dans l’œil d’un geste élégant

Il y aura l’auraille, plus cruel

Le volutin, plus dégagé

Le comble, moins sempiternel

Le baouf, toujours enneigé

Il y aura le chalamondre

L’ivrunini, le baroïque

Et tout un planté d’analognes

Les heures seront différentes

Pas pareilles, sans résultat

Inutile de fixer maintenant

Le détail précis de tout ça

Une certitude subsiste : un jour

Il y aura autre chose que le jour.


 Boris Vian, França (1920-1959)



quinta-feira, 23 de abril de 2020

Dos Livros

Os bens são árvore de folha caduca, 
de que serve um bilhete autografado, 
um par de tenis nike, uma velha caneta parker?


Muitos se lamentam por não encontrarem
a palavra exacta que lhes esconda
o pudor dos pensamentos secretos
sobre a posse de coisinhas insignificantes,
os primeiros livros comprados com sacrifício,
as fotografias de paisagens cheias de primos esquecidos.

Um incêndio, um cancro, uma enxurrada, 
um terramoto, uma carta de penhora das finanças
 são bombas arbitrárias sobre afectos herdados de raiz.

António Ferra, in  Dos livros levanta-se um pássaro




domingo, 19 de abril de 2020

Traições verbalizadas



           Confissão

Posso trair qualquer coisa
Com outra coisa
                          A água o sol e o solo…
Traio o lilás com a flor de laranjeira
 A Mesquita Azul com a Santa Sophia
                 Ambas com a pequena igreja ali da esquina
 A Torre da Donzela que desconhece o farol de Ahirkapi
                                                      se ela tivesse sabido…
Traio o violino com a flauta
Um poeta com outro
                                     Confundindo por vezes um com o outro…
 Por vezes
 Há de chegar um momento em que possa estar indecisa
 Então aí logo os tomaria a ambos nos meus braços
 Ao carteiro de um lado ao homem da tabacaria do outro
                                                Um prazer tão… que
Na realidade não gostaria de lhe dar um nome, mas na hora certa
Até poderia trair
Istambul.

                      Inci Asena, Turquia (1948)
                                 -a tradução do inglês é minha-



sábado, 18 de abril de 2020

Nur Bulum



No meu trono de pedra vejo o sol baixar
 o mar sobe
 e espalha a tinta no meu diário de bordo

a vida não tem nem pré-nem pós-fases
 é um pêndulo entre significados e palavras
 umas vezes com um menos outras com um mais


Nur Bulum, Turquia (1962)

(excerto de uma sequência de poemas não publicados).
-a tradução, do inglês, é minha-

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Senhora Li


 Perto da janela
 somos duas
 a minha sombra e eu.
 A lâmpada apaga-se
 fico no escuro.
A minha sombra esquece-me

Agora sou uma apenas.
Triste. Abandonada.

Senhora Li T' Sing- Tchao

China (1084?- depois de 1141)
  (traduzido, do francês, por mim) 

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Só agora



   Poética

Nascem com a manhã
(um dia e outro dia
 amanhecem
 uma promessa de palavras-espigas).

Vivem o tempo das rosas
 breves e ferozes e castas;
 vivem o tempo do amor
 desamor.

Comigo morrem
 em cada hora, cada pétala, cada
 verso.

 Poemas: só agora.


Emanuel Félix  (1936-2004)




sexta-feira, 10 de abril de 2020

Presos ou não?



Poemeto de liberdade

Se um dia estiveres preso
convence-te do seguinte:
o mundo inteiro é que está preso
numa prisão cujas paredes são as paredes da tua; 
e és só tu quem anda à solta.

Jorge de Sena (1919- 1978)




quarta-feira, 8 de abril de 2020

Flor do cardo



                                  nova adaga me penetra os costados
                                                                  de sangue coalhado
                                                                                      me sustento.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Humour français


"Étant donné qu’on va tous mourir,
                                       si quelqu’un est amoureux de moi
                                                                                          en cachette,
                                                       c’est le moment de se manifester."






domingo, 5 de abril de 2020

Tanka 38




38       

Pergunto se o vento
 irá abrir algum trilho
 na erva do meu jardim
 para que alguém possa vir
 ainda hoje visitar-me.

   Isumi Shikibu
 Japão (974? -1034?)


sexta-feira, 3 de abril de 2020

Não tem nada que saber?!!...




Não tem nada que saber:
 os dias não são nossos
 e temos de pagar para estar neles.

Como em casa alugada,
 podemos dispor neles os nossos móveis,
 mas não podemos espetar pregos nas paredes,
 que o senhorio não deixa.

E, meus amigos, não vale
 a pena dramatizar:

um dia deixamos de poder
 pagar a renda

 e somos despejados.
 
Tão fácil como isso.



A. M. Pires Cabral (1941)

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Canção (Araucanos)








 Pouca é a distância entre a vida e a morte.
 O caminho- ponte entre o mundo de baixo
 e o azul celeste -
 é mais curto que o caminho daqui até lá baixo.
 O mesmo que entre a vida e a morte.


(poema mudado para português por H Helder)