quinta-feira, 24 de novembro de 2022

« Poeta que sou»

                                                            Poeta que sou

 

Tem dias que estou botânica, afoita à flor, assim rosa.

Tem dias que estou em doida, adormecida, de ambulante.

Tem dias que estou radioactiva, átomos de versos, bomba.

Animal, às vezes de lasciva, outras vezes em toca e troca.

Mulher, que dentro me passeia, em sua estranha prosa.

Poeta que se evade da matéria, em tanta pedra, sou eu.

Poeta dos dias em que estou, afoita à dor, enfim rosa…

 

Margarida Fontes, Cabo Verde (ilha do Fogo), 1975



sábado, 19 de novembro de 2022

«Regresso»

 

Regresso

 

Mamãe Velha, venha ouvir comigo

O bater da chuva lá no seu portão.

É um bater de amigo

Que vibra dentro do meu coração

 

A chuva amiga, Mamãe Velha, a chuva,

Que há tanto tempo não batia assim…

Ouvi dizer que a Cidade - Velha

- a ilha toda -

Em poucos dias já virou jardim…

 

Dizem que o campo se cobriu de verde

Da cor mais bela porque é a cor da esp’rança

Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde.

- É a tempestade que virou bonança…

 

Venha comigo, Mamãe Velha, venha

Recobre a força e chegue-se ao portão

A chuva amiga já falou mantenha

E bate dentro do meu coração!

 

Amílcar Cabral, Guiné-Bissau (1924-1973)




quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Prece


Afasta-se o templo com o pé tão piedoso de paquiderme

o colo de júbilo em verdor

e as mil tetas rosadas por sobre o ombro

à sede infantil do céu atiradas

Curvado sobre a sandália o peregrino sorri

Que esta noite se avivem as trevas

pois a via láctea será


                           S.K








sexta-feira, 11 de novembro de 2022

o outono dos dias

 

Serpentinas douradas

os dias de outono

esvoaçam furtivos

fogem da minha mão

Peras sumarentas

crisântemos castanhas

muitas árvores já despidas

húmido tapete de cor

cobrindo o chão

cogumelos crescendo

terra lenha madeira

a rescender

a lua já rasga as nuvens

alguém atiça a lareira

longas serão as noites

 

Serpentinas douradas

os dias de outono

fogem da minha mão





segunda-feira, 7 de novembro de 2022

«Licencia para ejercer la libertad»

  

Todo documento es falso.

La licencia original no requiere autorización ni firma.
Por huella
bastan tus pasos sobre el césped mojado,
por sello
la marca que deja tu risa en lugares prohibidos.

No tiene fecha de vencimiento,
no se lleva en el bolso
ni colgada del cuello como una credencial.

Se lleva en la frente
como la llevan las águilas y los amaneceres
como la llevan los grandes poemas
que alumbran el camino a través de estas cavernas.

 

Denise Vargas, Honduras (1974)