(…) Ai como é diferente o Carnaval em Portugal. Lá nas
terras de além e de Cabral,
onde canta o sabiá e brilha o Cruzeiro do Sul, sob aquele
céu glorioso, e calor, e se
o céu turvou, ao menos o calor não falta, desfilam os blocos
dançando avenida abaixo,
com vidrilhos que parecem diamantes, lantejoilas que fulgem
como pedras preciosas,
panos que talvez não
sejam sedas e cetins, mas cobrem e descobrem os corpos como
se o fossem, nas
cabeças ondeiam plumas e penas, araras, aves-do-paraíso, galos
silvestres, e o samba,
o samba terramoto da alma (…) Em Lisboa Ricardo Reis não corre
esses perigos. O céu
está como tem estado, chuvoso, mas, vá lá, não tanto que o corso
não posso desfilar,
vai descer a Avenida da Liberdade entre as conhecidas alas de gente
pobre, dos bairros, é
certo que também há cadeiras para quem as puder alugar, mas
essas que irão ter
pouca freguesia, estão numa sopa, parece partida carnavalesca,
senta-te aqui ao pé de mim, ai que fiquei toda molhada. Estes
carros armados rangem,
bamboleiam, pintalgados de figuras, em cima deles há gente
que ri e faz caretas,
máscaras de feio e de bonito, atiram com parcimónia serpentinas
ao público, saquinhos
de milho e feijão que acertando aleijam, e o público
retribui com entusiasmo triste. (…)
Entre o público está esta rapariga a olhar o desfile e vem por
trás dela um rapaz com
uma mão cheia de papelinhos, aperta-lhos contra a boca, esfrega
freneticamente e vai
aproveitando a surpresa para a apalpar onde pode, depois ela
fica a cuspinhar, a
cuspinhar, enquanto ele afastado ri, são modos de galantear
a portuguesa, há
casamentos que começaram assim e são felizes. Usam-se
bisnagas para atirar ao
pescoço ou à cara das pessoas esguichos de água, ainda
conservam o nome de lança-
-perfumes, é o que resta, o nome, do tempo em que foram
suave violência nos salões,
depois desceram à rua, muita sorte é ser limpa esta água, e
não de sarjeta, como
também se tenho visto. Ricardo Reis aborreceu-se depressa
com a farrapagem do
corso, mas assistiu a pé firme, qualquer coisa que tivesse para
fazer não era mais
importante do que estar aqui, por duas vezes chuviscou,
outra vez caiu forte a
chuva, e ainda há quem cante louvores ao clima português,
não digo que não,
mas para carnavais não serve. (…) mas os mascarados, mesmo
pingando das
melenas e cadilhos, vão continuar a festa por essas ruas e
praças, becos e travessas,
em vãos de escada para o que não se possa confessar ou
cometer às claras, assim
se praticando por maior rapidez e barateza, a carne é fraca,
o vinho ajuda, o dia
das cinzas e do esquecimento será só na quarta-feira. (…)
José Saramago,
O ano da morte de Ricardo Reis (excertos)