segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

«Oblivion»

 

 Oblívio


Ele é Esquecimento, fé no nunca mais e no não,

fé brutal em esquecer eternamente.

 Ele é Olvido, lei da ingratidão,

 feiticeiro astral.

 Espadachim da desmemória e do

 sem recordações, é o rei Olvido.

É como um poço que tem a paixão de enterrar

que floresce quando sangram

os estigmas do coração.

 Luz degolada de um tempo tão feliz

 hoje Olvido vais apagar-me a mim.

 Ameaça esgotante, ele reduz a zero por igual

 o real, o melhor, o fatal.

 Hipnotiza-te com o doloroso mel

 do amor ausente,

 para ultimar, ébrio, amargo e vil,

 o sagrado ontem,

 rei Olvido.


 Astor Piazzola (música)

- a tradução da letra é minha, mas ignoro o nome do autor do texto- 



quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Carnaval no Brasil e em Portugal ( em 1936)

 

(…) Ai como é diferente o Carnaval em Portugal. Lá nas terras de além e de Cabral,

onde canta o sabiá e brilha o Cruzeiro do Sul, sob aquele céu glorioso, e calor, e se

o céu turvou, ao menos o calor não falta, desfilam os blocos dançando avenida abaixo,

com vidrilhos que parecem diamantes, lantejoilas que fulgem como pedras preciosas,

 panos que talvez não sejam sedas e cetins, mas cobrem e descobrem os corpos como

 se o fossem, nas cabeças ondeiam plumas e penas, araras, aves-do-paraíso, galos

 silvestres, e o samba, o samba terramoto da alma (…) Em Lisboa Ricardo Reis não corre

 esses perigos. O céu está como tem estado, chuvoso, mas, vá lá, não tanto que o corso

 não posso desfilar, vai descer a Avenida da Liberdade entre as conhecidas alas de gente

 pobre, dos bairros, é certo que também há cadeiras para quem as puder alugar, mas

 essas que irão ter pouca freguesia, estão numa sopa, parece partida carnavalesca,

senta-te aqui ao pé de mim, ai que fiquei toda molhada. Estes carros armados rangem,

bamboleiam, pintalgados de figuras, em cima deles há gente que ri e faz caretas,

máscaras de feio e de bonito, atiram com parcimónia serpentinas ao público, saquinhos

de milho e feijão que acertando aleijam, e o público retribui com entusiasmo triste. (…)

Entre o público está esta rapariga a olhar o desfile e vem por trás dela um rapaz com

uma mão cheia de papelinhos, aperta-lhos contra a boca, esfrega freneticamente e vai

aproveitando a surpresa para a apalpar onde pode, depois ela fica a cuspinhar, a

cuspinhar, enquanto ele afastado ri, são modos de galantear a portuguesa, há

casamentos que começaram assim e são felizes. Usam-se bisnagas para atirar ao

pescoço ou à cara das pessoas esguichos de água, ainda conservam o nome de lança-

-perfumes, é o que resta, o nome, do tempo em que foram suave violência nos salões,

depois desceram à rua, muita sorte é ser limpa esta água, e não de sarjeta, como

também se tenho visto. Ricardo Reis aborreceu-se depressa com a farrapagem do

corso, mas assistiu a pé firme, qualquer coisa que tivesse para fazer não era mais

importante do que estar aqui, por duas vezes chuviscou, outra vez caiu forte a

chuva, e ainda há quem cante louvores ao clima português, não digo que não,

mas para carnavais não serve. (…) mas os mascarados, mesmo pingando das

melenas e cadilhos, vão continuar a festa por essas ruas e praças, becos e travessas,

em vãos de escada para o que não se possa confessar ou cometer às claras, assim

se praticando por maior rapidez e barateza, a carne é fraca, o vinho ajuda, o dia

das cinzas e do esquecimento será só na quarta-feira. (…)

 

 José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis (excertos)

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

relações sintáticas

Relações sintáticas

 

Sob as palavras proferidas na euforia dos encontros

há um leito aquático de silêncio recoberto

        onde

 afetos dúvidas medos memórias

 depositam suas variadas vozes

em vívidas correntes

          depois

em algas corais crustáceos esponjas

     transmutando se vão

            ou

 se acamam então bem no fundo

          até

  serem retalhados

  pelas tartarugas marinhas

  que

 à voga surda

deixam a vaga

descendo

em busca de alimento



 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

cismo/sismo


o vibrar da ponte

o ronco da terra

o teto que cai

estremunhado pavor 

    desmunidos 

sem mãos a medir

humanos que 

o amor 

impele

na escuridão 

escavam escombros

 pela salvação

no frio da noite

na terra gelada

o tremor da mão

réplicas

é madrugada