quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Carnaval no Brasil e em Portugal ( em 1936)

 

(…) Ai como é diferente o Carnaval em Portugal. Lá nas terras de além e de Cabral,

onde canta o sabiá e brilha o Cruzeiro do Sul, sob aquele céu glorioso, e calor, e se

o céu turvou, ao menos o calor não falta, desfilam os blocos dançando avenida abaixo,

com vidrilhos que parecem diamantes, lantejoilas que fulgem como pedras preciosas,

 panos que talvez não sejam sedas e cetins, mas cobrem e descobrem os corpos como

 se o fossem, nas cabeças ondeiam plumas e penas, araras, aves-do-paraíso, galos

 silvestres, e o samba, o samba terramoto da alma (…) Em Lisboa Ricardo Reis não corre

 esses perigos. O céu está como tem estado, chuvoso, mas, vá lá, não tanto que o corso

 não posso desfilar, vai descer a Avenida da Liberdade entre as conhecidas alas de gente

 pobre, dos bairros, é certo que também há cadeiras para quem as puder alugar, mas

 essas que irão ter pouca freguesia, estão numa sopa, parece partida carnavalesca,

senta-te aqui ao pé de mim, ai que fiquei toda molhada. Estes carros armados rangem,

bamboleiam, pintalgados de figuras, em cima deles há gente que ri e faz caretas,

máscaras de feio e de bonito, atiram com parcimónia serpentinas ao público, saquinhos

de milho e feijão que acertando aleijam, e o público retribui com entusiasmo triste. (…)

Entre o público está esta rapariga a olhar o desfile e vem por trás dela um rapaz com

uma mão cheia de papelinhos, aperta-lhos contra a boca, esfrega freneticamente e vai

aproveitando a surpresa para a apalpar onde pode, depois ela fica a cuspinhar, a

cuspinhar, enquanto ele afastado ri, são modos de galantear a portuguesa, há

casamentos que começaram assim e são felizes. Usam-se bisnagas para atirar ao

pescoço ou à cara das pessoas esguichos de água, ainda conservam o nome de lança-

-perfumes, é o que resta, o nome, do tempo em que foram suave violência nos salões,

depois desceram à rua, muita sorte é ser limpa esta água, e não de sarjeta, como

também se tenho visto. Ricardo Reis aborreceu-se depressa com a farrapagem do

corso, mas assistiu a pé firme, qualquer coisa que tivesse para fazer não era mais

importante do que estar aqui, por duas vezes chuviscou, outra vez caiu forte a

chuva, e ainda há quem cante louvores ao clima português, não digo que não,

mas para carnavais não serve. (…) mas os mascarados, mesmo pingando das

melenas e cadilhos, vão continuar a festa por essas ruas e praças, becos e travessas,

em vãos de escada para o que não se possa confessar ou cometer às claras, assim

se praticando por maior rapidez e barateza, a carne é fraca, o vinho ajuda, o dia

das cinzas e do esquecimento será só na quarta-feira. (…)

 

 José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis (excertos)

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