sexta-feira, 26 de junho de 2015

Mário de Sá-Carneiro

                                                 Sexta canção de declínio                                                               


Um frenesi
hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Foi um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida...

Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil.
Na ideia de um país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem...

Parou ali a barca – e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou... – ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo...

...Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguescida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor de rosa
As torres de platina e de saudade.

Avenidas de seda deslizando,
Praças de honra libertas sobre o mar...
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos – carícias de âmbar flutuando...

Os palácios a rendas e escumalha,
De filigrana e cinza as catedrais –
Sobre a cidade a luz – esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais...

Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho – solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada...

Exílio branco – a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos – seu brou-há-há...
E na Praça mais larga, em frágil cera,
Eu – a estátua que nunca tombará... 

Mário de Sá-Carneiro

Nota: as fotografias foram tiradas pela Undine,    (Pavilhão do Japâo, 56ª Bienal de Veneza)
e  ainda por Marina Tavares Dias.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Entardecer





Verão

A noite curta;
no baixio permanece
a lua que cresce.

 Yosa Buson, Japão
     (1716-1784)

Orpheu 2


(...) Deponho então as minhas limas,
As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
Os polidores da minha sensação –
E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,
Varar a sua Beleza – sem suporte, enfim! –
Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,
Alastra e expande em vibrações:
Subtilizado, sucessivo – perpétuo ao Infinito!...

Que calotes suspensas entre ogivas de ruínas,
Que triângulos sólidos pelas naves partidos!
Que hélices atrás dum voo vertical!
Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténis! –
Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora...
Que grinaldas vermelhas, que leques, se a dançarina russa,
Meia nua, agita as mãos pintadas da Salomé
Num grande palco a Oiro!
– Que rendas outros bailados! (...)

Excerto de Manucure, Mário de Sá-Carneiro in Orpheu 2




segunda-feira, 22 de junho de 2015

Um poderoso zumbir: Nástio.



Verão.
Via etérea teia,
 nos ouvidos
 o único Mosquito que não desejei enxotar.

Ora escutai, meus amigos-
- que isto é mesmo de espantar!...

domingo, 21 de junho de 2015

Minerva





La sagesse des nations

Minerve pleure
 sa dent de sagesse pousse
 et la guerre recommence sans cesse.


Jacques Prévert, França (1900-1977)









sexta-feira, 19 de junho de 2015

Hélia Correia: «E quem não cantaria?»


I
E quem não cantaria?
A doce virgem
 cujo sangue mensal  recobre
 as rosas.

A sabedora hetaira,
 essa que lambe
 inteiramente o corpo;
 a que percorre o homem como um vento,
 uma luz lancinante,
 essa que rouba,
 a sugadora -
 - canta.

Hélia Correia

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Flores para Hélia Correia



 (...) «Estou consciente do desequilíbrio que afectou esta massa narrativa. Descai na maior parte para a infância, depois começa a fraquejar, depois dissipa-se. Os passos biográficos que evoco não são a minha vida. São fragmentos de experiências comuns, objectos de partilha que podemos manobrar frente aos outros sem pudor. Há, para muitos deles, testemunhas. Posso mostrá-los, como mostro até o quarto de dormir para exibir bordados que me faz a minha irmã. À serra, não vos levo. Não vos levo para dentro dos meus esconderijos. Está lá a minha escrita: não falo dela. Estão lá as minhas vidas: reservadas e subterrâneas, sem acesso à vista. Estão as palavras e o interdito. Estão os lugares e os tempos que se regem por coordenadas que não deixo aqui.»

Ler mais: http://visao.sapo.pt/autobiografia-de-helia-correia-a-menina-dos-gatos=f822990#ixzz3dQeCSrtq

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Verdade em movimento


Beauty is truth, truth beauty,—that is all
Ye know on earth, and all ye need to know.


John Keats (1795-1821)





.              ...mas ele ainda não sabia da galáxia mais distante

                     da mais bela e mais brilhante!
              

domingo, 14 de junho de 2015

Um poema de R Kapuscinki


Odszedłem tak daleko od siebie
że już nie umiem nic powiedzieć
na swój temat
ani co czuję
kiedy moknę na deszczu
ani kiedy zamieniam się
w źdźbło suchej trawy
wypalonej słońcem
nie umiem odnaleźć
samego siebie
opisać tej postaci
nazwać jej
zapewnić
że                         istnieje

Ryszard Kapuściński, Polónia (1932-2007)

Afastei-me tanto de mim mesmo
 que já não sei dizer nada
 sobre mim
 nem o que sinto
 quando me molho debaixo da chuva
 nem quando me transformo
 num filamento de erva seca
 queimada pelo sol
 não sei encontrar-me
 a mim próprio
 descrever este personagem
 nomeá-lo
 assegurar que                existe

     (Traduzi, do castelhano)

sábado, 13 de junho de 2015

Pessoa- em francês


J’ai plongé dans le rêve
 Comme dans une mer.
 Je suis mené.

Fernando Pessoa/
                                                         Jean Seul de Méluret (1888-1935)




quinta-feira, 11 de junho de 2015

«Todo es lejanía»


Todo es lejanía

 Es la vida, en efecto, como un viaje.
Xaime Martínez

Al suave y melancólico compás
de los paisajes sucediéndose,
se comprende que todo es lejanía.
Porque todo muere si se aparta de los ojos.
Porque todo recuerdo es tacto ciego,
vasallo de una sombra suplicante.
¿Y de qué lugar, o acaso
de qué palabra, de qué instante, de qué cuerpo
estamos lejos siempre? ¿Qué paloma
es la que sobrevive en lo remoto?
Visita el viento un último horizonte.
Ya vuela transitoria la distancia.

Miguel Floriano Traseira, Espanha (1992)



quarta-feira, 10 de junho de 2015

Às ausências




Pode um desejo imenso
arder no peito tanto
que à branda e a viva alma o fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto,
e purifique em tanta alteza o esprito
com olhos imortais
que faz que leia mais do que vê escrito.
                 (...)
Luís Vaz de Camões,(1524?-1580?)
Explicação da Ausência

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer — fosse abertura —
E a saudade é tudo ser igual. 


Daniel Faria, (1971-1999)


segunda-feira, 8 de junho de 2015

Equívocos


LA PALOMA

Se equivocó la paloma,
se equivocaba.
Por ir al norte fue al sur,
creyó que el trigo era el agua.
Creyó que el mar era el cielo
que la noche la mañana.
Que las estrellas rocío,
que la calor la nevada.
Que tu falda era tu blusa,
que tu corazón su casa.
(Ella se durmió en la orilla,
tú en la cumbre de una rama.)

Rafael Alberti, Espanha (1902-1999)

sábado, 6 de junho de 2015

Passagem










Para o Henrique


Huye del sol el sol, y se deshace
la vida a manos de la propia vida;
del tiempo que, a sus partos homicida,
en mies de siglos las edades pace.

Nace la vida, y con la vida nace
del cadáver la fábrica temida.
¿Qué teme, pues, el hombre en la partida,
si vivo estriba en lo que muerto yace?

Lo que pasó ya falta; lo futuro
aún no se vive; lo que está presente
no está, porque es su esencia el movimiento.

Lo que se ignora es sólo lo seguro;
este mundo, república de viento
que tiene por monarca un accidente.

Gabriel Bocángel , Espanha (1603-1658)


quinta-feira, 4 de junho de 2015

Estudos

Estudo

Através da janela
mando
a negra razão
falar com a 
paisagem.

Ernst Meister, Alemanha (1911-1979)
   (trad. de João Barrento)














quarta-feira, 3 de junho de 2015

Quadra

O laço que tens no peito
                                   Parece dado a fingir.
                                   Se calhar já estava feito
 Como o teu modo de rir.
Fernando Pessoa

terça-feira, 2 de junho de 2015

Aprendizagem














TEACHING THE APE TO WRITE POEMS

They didn’t have much trouble
teaching the ape to write poems:
first they strapped him into the chair,
then tied the pencil around his hand
(the paper had already been nailed down)
Then Dr. Bluespire leaned over his shoulder
and whispered into his ear:
“You look like a god sitting there.
Why don’t you try writing something?”

James Tate, EUA (1943)

Relojoaria


             Tic-tac


 Transcorro displicente
 A Vida.
 Nunca chegou tarde
 nem se foi cedo.
 É um relógio imperfeito,
 sem ponteiros ou sinos
 que anunciem a vontade.
 O meu pequeno relógio é mais útil,
 anuncia dentro de mim
 o tempo exacto
 da duração da mortalidade.
 Logo a seguir,
 O Senhor,
 desarranja a engrenagem
 e vai embora.

Lauren Mendinueta, in Uma visita ao Museu de História Natural


         (tradução de Ricardo Marques)



segunda-feira, 1 de junho de 2015

Meteoritos, velhinhas e crianças





Ontem, em Campo del Cielo, na Argentina, 4 homens roubaram 1,5 toneladas de meteoritos protegidos para fazerem contrabando. Por cá, algumas horas depois, num restaurante popular da capital, 3 velhinhas revezavam-se no desvio de copos esquecidos em cima das mesas; a que tipo de comércio ilegal se dedicariam? Ou seria apenas porque, dispondo de muitos desses terrestres recipientes em seus lares, mais rápida e inebriadamente chegariam aos céus?