quarta-feira, 30 de março de 2016

Escafandro

AO LEITOR

Escreves quando as fábulas escavas.
Falas da morte no poema neste tempo
mercantil e de imagens rápidas.
Olhares oblíquos foi quanto viveste?

E agora, quando lês, consegues separar
o lido na página do vivido onde encerraste
a verdade íntima dos factos? Se somos
o que fazemos, como negar que és

ficção cinematográfica nos outros?
Para ti tem o texto a posse do que foste
mas a poesia não anula a dor e os actos

aos poucos sobem aos olhos Escombros
no teu íntimo mar suspenso e vasto
(num escafandro desces aos desastres)



António Carlos Cortez  (1976)



segunda-feira, 28 de março de 2016

A virgem de Guadalupe


The Virgin of Guadalupe

From the playground to the park,
she tore indiscriminately,

her hair wide behind her like a
flag; dripping with catholica,

purple and gold rosaries
at the snaky body’s every juncture;

velvet ribbon and scraps of lurex,
blue Marys and Theresas.

Through the city she blazed a trail,
her mouth became a firetrap;

she smelt of men
with motorbikes and vintage ephemera.

They called her The Virgin of Guadalupe,
for all her nailgunned roses, her weeping messiahs;

though the name was ironic.
You heard she mothered

noisily behind
the bus shelter at dusk.

In the summer her hair would burn
and the shrines she kept behind her ears would melt,

she’d tear through the city in ankle socks
and not much else.

It won’t be long you see,
before she tears no more –

becomes a legend
for the sewer’s glitterati

and perhaps
cleans rooms in a hotel somewhere.


 Amy Blakemore, (Inglaterra, 1991)


segunda-feira, 21 de março de 2016

Poesia Primavera e outras coisas mais

Día catorce,
PRIMERA FUGA

Por senderos de hienas se sale de la tumba
si se supo ser hiena,
si se supo vivir de los despojos
de la esposa llorada más por los funerales que por muerta,
poeta viudo de la poesía,
lotófago insaciable de olvidados poemas.

Gilberto Owen, México (1904-1952)



AMARCORD

Lo so, lo so, lo so
che un uomo, a 50 anni,
ha sempre le mani pulite
e io me le lavo due o tre volte al giorno
ma è quando mi vedo le mani sporche
che io mi ricordo di quando
ero ragazzo


Tonino Guerra, Itália (1920-2012)

DESOBEDIÊNCIA CIVIL

se a preguiça encantadora dos homens
deve acabar a sua obra e a sua língua de fogo
unir os dias e as noites do desejo
então saudemos as grandes afirmações:
«a poesia deve ser feita por todos» e
«a poesia é feita contra todos»

os devoradores de cultura podem sair pela esquerda alta
fiquem os amantes obscuros e o único os raros
todos os nus
porque a língua portuguesa não é a minha pátria
a minha pátria não se escreve com as letras da palavra pátria

Vêde
sobre a coroa de silêncio do vulcão adormecido
uma ave a sua plumagem de cores trémulas
e as asas que escrevem letra a letra o nome definitivo do homem
e no entanto multidões de gnomos
cada qual com o seu estandarte
esperam à entrada dos cemitérios
para saudar o fogo-fátuo

eu passo de bicicleta à velocidade do amor
atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça
para oferecer aos revoltados

António José Forte  (1931-1988)




quinta-feira, 17 de março de 2016

« O Teatro»



(...) As palavras estão velhas, ridículas. Mercadoria estragada, restos que por esquecimento se não limparam. Repugnante. As palavras ficam no exterior da cidade, nas zonas de entulho. Às palavras, lançam-se-lhes pedras, aos loucos, escarra-se-lhes em cima. As palavras loucas seguem o seu caminho, sozinhas sem amor. Arrastam-se moribundas, vão para o hospital e pedem que as capem.
Cedem. As palavras aceitam o silêncio.
Mas eu estou em crer que dantes existiam as palavras vivas. Deve ter havido nalgum sítio uma guerra invisível que destruiu tudo, uma permanência prolongada num asilo, algum medicamento, uma guerra química na consciência. Esqueci. (...)


Emma Santos, França (1943- 1983)

sexta-feira, 11 de março de 2016

Barbies


Introducing Barbara Millicent Roberts

sobre el volante del Volkswagen Beetle
tiene los brazos estáticos

tiene los pies estáticos
en el suelo
junto al acelerador

la sonrisa distorsionada en el espejo
de plástico

lentes de plástico también y el cabello
quieto ante un viento falso

cabeza torcida cabeza torcida
hay un pequeño pasaporte en el asiento
y un maletín que no cierra
en la cajuela

es otro día para Barbara Millicent Roberts
el mismo día que no empieza y no termina


II
Barbara Millicent Roberts

el nombre de la mujer ejecutiva

todas las niñas de los 90
queríamos ser como tú

alta bella inteligente
rubia de ojo azul

la imagen de la perfección

en rosa


Olga Carrizales (México,1989)


quinta-feira, 10 de março de 2016

«Nossa Senhora da Apresentação»


NOSSA  SENHORA  DA APRESENTAÇÃO

O altar as vagas,
 o dossel a espuma!
 Missas rezadas pelo vento,
 ora pelos fiéis defuntos que se foram
 noutras vagas,
 ora pelas barcaças que, uma a uma,
 buscaram as sereias na distância
 e se foram com elas.
 Sobre o altar, entre círios, que não são
 os círios murchos das igrejas velhas
 mas os lumes das estrelas,
 ELA,
 Nossa Senhora da Apresentação,
 Aquela
 que não tem mantos da cor do céu
 nem fios de oiro nos cabelos
nem anéis nos dedos;
 aquela
 que não traz um menino nos seus braços
 porque os seios mirraram
 e já não tem pão para lhe dar;
 Aquela
 que tem o corpo negro e sujo
 e os ossos a saltar
 da pele
 e dos rasgões da saia e do corpete;
 Nossa Senhora da Apresentação
 da Beira-Mar,
 que tem capelas
 em cada peito de marinheiro,
e que morre e, num instante,
 se renova
 e que anda
 quer nos engaços do sargaceiro
 ou nas gamelas do pilado
 e palhabotes da Terra Nova.
 Aquela
 a quem todos adoram.
                                         Dos meninos
 feitos nos intervalos das campanhas,
 aos bichanos que limpam de cabeças
 e tripas de pescado
 as muralhas do cais.

O dossel a espuma.
O altar as vagas
- e que altar enorme! -
Entre círios de estrelas,
 Nossa Senhora da Apresentação
 e Justificação
- A Fome!


Álvaro Feijó, (1917-1941)


Pintura de António Firmino

terça-feira, 8 de março de 2016

Mulher



    8/3/2016

da Felicidade não sei;
 sei da cumplicidade das risadas
 da conjura
 da alegria 100% pura
 da transparência no varrer do sofrimento,
 do muito crer ir além do firmamento
 sei
 da garra e da ternura com que invento
 o que em mim me serve de sustento

sábado, 5 de março de 2016

Baleias

                                                                   BALEIAS

O mar sem fim conhece-lhes os percursos misteriosos
 pontuados de falas, silêncios, cantos e suspiros
 Assim por diante, de cem a duzentos anos de solidão


            Rui Caeiro  (1943)



quinta-feira, 3 de março de 2016

Fractal?




Frack-tal

Inhumana chispa
rectitud, insolencia clara córnea,
abeto, obsoleto…
cyan, noche crispada
reminiscencia
ablanda el corazón, la cúspide, sol
de cuatro rayos
sol de cuatro voces
soil
de mil letargos
uno a uno a uno a aún no
soy
tan tin tan tin
la rama… roble, gas,
vidrio, retornable
en horno de piedra arderás.
plomo olvido ornamento menta mientes mientras
tras
la reja, gira la aldaba
ven:
calor en el tabaco de un ranchero
urgencia de encontrarse a un heredero.
a uno a uno aún no
tin tan tin tan tan.


Míkel F. Deltoya, México (1991)


quarta-feira, 2 de março de 2016

Ar


    RITMO

 Involuntário e tão banal
 este contínuo inspirar
 fundo ou leve ou mesmo
 intensamente irregulado
 ofegante ou sísmico. Por vezes
 chama-nos uma desistência funda
 e dorida desse obrigatório ritmo,
 esquecidos de que nenhuma pátria
 ou ideal é maior e mais gratuito
 que esse composto cada vez mais
 em desfalque oxigenado
 que nos invade docemente as altas
 narinas, percorre canais e membranas
 e desce democraticamente
 às saídas menos nobres.


 Inês Lourenço (1947)