terça-feira, 29 de agosto de 2017

Nem sempre sou igual...


 XXIX
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
 Mudo, mas não mudo muito.
 A cor das flores não é a mesma ao sol
 De que quando uma nuvem passa
 ou quando entra a noite
 E as flores são cor da sombra.

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
 Por isso quando pareço não concordar comigo,
 Reparem bem para mim:
 Se estava virado para a direita,
 Voltei-me agora para a esquerda,
 Mas sou sempre eu, assente sobre os meus pés –
 O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
 E aos meus olhos e ouvidos atentos
 E à minha clara simplicidade de alma...


Alberto Caeiro/ Fernando Pessoa, (1888-1935)

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Em sítio deslocalizado

O deserto está perto. Sempre. Mas o deserto é fértil

Gosto de gostar de si
num sítio assim

 Adília Lopes (1960) 


Preciso de te ver
 esguio
sempre a correr
 entre conversas e vinho
 ou arrojado no corpo
 em malabarismo subtil
 assustar-me de mansinho com 1 enorme barril

Passo a passo no papel
ponho a milhas a desdita
 vou ceifando mil abrolhos
brilha o claro dos teus olhos
no negro da minha escrita


Para bem adormecer vou ao campo pra te ver



(agradeço ao grande Luís, à Adília, à desertificação , ao campo e ao céu)

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Sensações estivais


 Rothko anteontem ontem buganvilias
 hoje barras de chocolate em prata dourada
  dias transmutados em cor formas sabor -
 - preço de um sensacionismo semiafectivo
 que a tudo confere o mesmo valor

 Feitas as contas o verão ainda não acabou


terça-feira, 22 de agosto de 2017

Elas vistas por eles 3


Nos teus olhos alguém anda no mar
alguém se afoga e grita por socorro
e és tu que vais ao fundo devagar
enquanto sobre ti eu quase morro.

E de repente voltas do abismo
e nos teus olhos há um choro riso
teu corpo agora é lava e fogo e sismo
de certo modo já não sou preciso.

Na tua pele toda a terra treme
alguém fala com Deus alguém flutua
há um corpo a navegar e um anjo
                                          ao leme.

Das tuas coxas pode ver-se a Lua
contigo o mar ondula e o vento geme
e há um espírito a nascer de seres tão nua.


Manuel Alegre, 1936

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Elas vistas por eles:2



As mulheres

As mulheres são a música da vida,
 a clara e nua aparição do amor,
 e também putas inocentes, dor
      de castidade sem f 'rida.

E, femininas, já restam tão poucas
 amáveis, com pudor e sedutoras:
 as mulheres, já não querem ser senhoras,
      feministas e tôscas:

desfiguram seu corpo que adoece,
 ausentam-se do sagrado no trajar:
 ultraje e agressão ao nosso olhar
    que não se compadece.

O poeta é um esteta, tem argúcia.
 Só pode amar beleza em corpo humano,
 se da roupa emergir o soberano
       espírito da música.


A. Barahona da Fonseca, 1939

domingo, 20 de agosto de 2017

Elas vistas por eles: 1

Amadeo Modigliani
Crónica Feminina

estava nua, só um colar lhe dava
horizontes de incêndio sobre o peito,
a transmutar, num halo insatisfeito,
a rosa de rubis em quente lava.

estava nua e branca num estreito
lençol que o fim do sono desdobrava
e a noite era mais livre e a lua escrava
e o mais breve pretérito imperfeito

só o tempo verbal lhe fugiria,
no alongar dos gestos e requebros,
junto do espelho quando as aves vão.

toda a nudez, toda a melancolia,
a dor no mundo, a deslembrança, a febre, os
olhos rasos de água e solidão.
 Vasco Graça Moura (1942-2014)

O ar, o bafo e o fogo



A alimentação simples da fruta,
 a sabedoria infusa,
 as constelações ao alto zoológicas arquejando, brutais
 animais vivos, e à mesa de súbito o ar deslocado nas palavras, como se
 por cima do ombro respirasse a memória
 assimétrica do mundo, e um idioma sem gramática,
 uma rápida música descentrada,
 fundassem tudo, e depois corressem
 o bafo e o fogo.


Herberto Helder (1930-2015)

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Na láctea via


 quando não pedalam

envoltos descontraidamente em cores diferentes

 calcorreiam as galácticas rotas do oculto

 com bípedes mais conformes no calçar





sábado, 12 de agosto de 2017

Gratidão tabagista

O tabaco é uma planta, ou melhor, o que hoje se vende com esse nome era, já foi ...
hoje, entre cortinas de fumo, recebi duas cigarilhas do Sérgio, que vai à Noruega para arejar: respirar ar puro e ouvir  música- sem os calores incendiários do verão português.




sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Plantas curiosas


 À noite
          na varanda
 as plantas ouvem
          o que dizem
         às paredes
as pessoas
            na rua;
as mais jovens
  preferem
      seguir
as estrelas
   a
cair


e as muito muito caseiras
   ouvem rádio
 noites inteiras

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Plantas


 Estou práqui de plantão
doem-me as  plantas dos pés
 a planta-alimento
 as plantas no jardim-
 diz o plantador e pranteia
 Vi a planta da cidade  
o edifício planteado
 plantas-de-neve nareia
e a planta-misteriosa ainda-
 talvez o pau de Cabinda do professor Karamba
 sobre o plantel na corda bamba
 e o giestal do plantageneta
 li
mas
 se semeio ventos também os devo colher-

 ou o plantio é treta...

terça-feira, 8 de agosto de 2017

« semilla que no brota»

La primera lluvia

Como dijo la abuela:
Si he de irme
con las primeras lluvias,
me llevaré tu silencio
y tus ojos,
para que tú brotes palabra,
brotes corazón.

Hace muchas lluvias que se fue,
yo sigo raíz,

sigo semilla que no brota.

Hubert Matiúwàa (1986),México 

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

As navalhas


Las navajas

Nuestras navajas rayan de noche
para sangrar el día sobre la piedra,
cortan kilómetros de carne
y viajan en túneles para esconder la avaricia.

Nuestras navajas brillan en las manos de la muerte,
dibujan los rayos que caen en los ojos,
tienen ausencias de labios,
tienen añoranza de brazos, pies y cabezas.

Nuestras navajas viajan cortando los vientos
y afilando las mañanas,
encuentran pies en Tlapa,
escarban hoyos en Chilpancingo
y se visten de rojo en Chilapa.

Nuestras navajas esperan en ataúdes
nuestros pequeños cuerpos,
han llegado de lejos a vivir en nuestras manos,
a algún espíritu le pertenecían
o a un aire malo,
llegaron con hambre de nuestros brazos tiernos
y ahora, en esta loma en que se mece el dolor,
¿quién recreará el rompecabezas que han hecho?


Hubert Matiúwàa (1986), México,
 pseudónimo Hubert  Malina (poeta tlapaneco,
 pertence  à cultura Mè´phàà )


domingo, 6 de agosto de 2017

Adivinha quem vai jantar







        Cortada pelo fio

 da espada samurai

         sangra a melancia

              sem um ai


sábado, 5 de agosto de 2017

J'aimerais- gostaria...

J'aimerais
 J'aimerais
 Devenir un grand poète
 Et les gens
 me mettraient
 Plein de laurier sur la tête
 Mais voilà
 Je n'ai pas
 Assez de goût pour les livres
 Et je songe trop à vivre
 Et je pense trop aux gens
 Pour être toujours content
 De n'écrire que du vent.


 Boris Vian




quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Moreau, Malle, Fassbinder, Wilde, Birkin , Gainsbourg- ilhas e vagas

A pedido de R W Fassbinder interpretou Each man kills the thing he loves, já em idade avançada- mas deu voz e corpo a muito mais.
 ” Sentia-se abandonada”- dizem alguns... eu cá acho que, longe da cena, morreu sentada por estar cansada; partiu quando decidiu para o nada- sem avisar ninguém: fez muito bem!

Dame Moreau navigue maintenant une vague nouvelle, trop vague pour elle- le seul scandale qu’elle redoutait.

 Dame-demoiselle, malgré toute sa sensualité la liberté éternelle qu’elle exhalait, croyait encore à la totalité- toujours le plein, la pleine lune… demoiselle Jeanne, poussez en une, je vous comprends : on cherche, à jamais le tourbillon- que l’on sache ou non … la vague sur l’île nue, qui va et vient en pleine crue.