Santa Maria desvenda-se entre as névoas: um monte alongado
com uma parte mais baixa e a Vila do Porto saliente, tudo azul emergindo do
azul. À medida que o São Miguel se
aproxima, reparo que a ilha é doirada, com sombras a escorrer pelos montes
abaixo. Alguns riscos mais carregados, algumas manchas roxas que pouco a pouco
se acentuam. Fico perplexo e só quando chegamos quase à fala da povoação, Vila
do Porto, é que compreendo: a ilha é um torresmo de pedra negra, de areia
negra, como se tivesse passado pelo fogo do Inferno, mas o torresmo está
coberto de giesta rasteira e doirada, de giesta em flor, que cheira a uma légua
de distância. Subo por um caminho entre figueiras-do-diabo e solteiras, como se
chamam aqui as sardinheiras, que crescem por todos os lados. Colinas, campos de
pastagem, e ao longe um pico mais alto donde se descobre toda a ilha. Povoação
de duas ou três ruas e casinhas, com a igreja, a ossada dum convento e o solar
humilde de Gonçalo Velho.
É isolado e triste — mas pedras, campos e furnas estão
cheios de asas e de gritos: os escarnentos, negros como melros, passam no ar
com o biscato no bico, e a babosa enche este negrume cinzelado de oiro e de
perfume. Há momentos em que se encobre o Sol e o torresmo sai mais negro do
mar: só fica o cheiro que impregna a terra e o céu.
É aqui que os barcos de três velas vêm buscar o barro em
bolas, para São Miguel fabricar grandes talhas, canecas porosas, vasilhas de
todas as formas e feitios. Santa Maria não só fornece os oleiros dos Açores mas
fabrica também cântaros, púcaros, caboucos, numa ruazinha escondida da vila.
Processos primitivos: o homem numa oficina escura prepara e amassa o barro, a
que outros vão lentamente dando feitio no engenho. Trabalha a mão e o pé: o pé
na grande roda que faz girar o prato com o barro ainda informe, e a mão
dando-lhe a forma. Que importa que isto seja um ermo onde até às vezes a água
falta, sendo preciso para matar a sede trazê-la em navios de São Miguel? Aqui
se vive e aqui se morre. E devo dizer que desta ilha silvestre duas coisas
ficarão para sempre na minha memória: o púcaro de barro poroso que torna a água
fresquíssima, e o cheiro a giesta que a embalsama. Fiquei-a conhecendo para o
resto da minha vida pela ilha que cheira bem... (...)
Já no horizonte outra ilha se estende em biombo, baixa e
enorme, toda da mesma cor. Mas o que me interessa é a luz que mudou, é o céu
que mudou — a luz delicada dos Açores, o céu dos Açores carregado de humidade e
forrado de nuvens que um pintor imitaria na tela com pequenos toques
horizontais cor de chumbo, carregando-os e amontoando-os cada vez mais até à
linha do horizonte. E é esta luz que me acompanha e nunca mais me larga, a mim
que vivo de luz límpida, e que acordo todas as manhãs com o pensamento na luz... (...)
Nota: Segundo o cronista Gaspar Frutuoso, na sua
obra Saudades da Terra, Gonçalo Velho
descobriu a ilha de Santa Maria, em 1432, e a de S. Miguel, em 1444. É de notar
que nem Gomes Eanes de Zurara, nem Duarte Pacheco Pereira o referem nas suas
crónicas. Gonçalo Velho foi o primeiro capitão-donatário das ilhas de Santa
Maria e S. Miguel, no Arquipélago dos Açores.
Excerto de As
Ilhas Desconhecidas (1926) de Raul Brandão
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