segunda-feira, 27 de julho de 2020

Deambular em alerta



O novo flâneur II

navega
num informático oceano
feito de simulacros
de imaginadas redes de sentido

Olha o écran
o novo espelho
que figura e desfigura
o seu medo maior

Onde é que há
um espelho que tranquilize?


A imagem é só ela:
uma constelação de impasses
um palimpsesto
feitos de interfaces.

Ana Hatherly 

(texto publicado em 2001)



domingo, 19 de julho de 2020

Marulho de mar



Molhar as plantas

tudo tem barulho de mar
enceradeira isopor carro
em movimento aerosol
espirro pistola moeda

telha bombardeio cigarro
queimando pia degradê
cãimbra inseto monge
sua vizinha o futuro

tem barulho de mar
na camiseta no quadro
chinelo aeroporto gaiola
panela caverna birita

beijo tem biblioteca
também um curió bola
de chiclete sobretudo
um dinossauro alado

tem mar de todo tipo
de barulho e dentro
de cada mar um ralo
entupido de cabelos.


Bruna Beber, Brasil, 1984


segunda-feira, 13 de julho de 2020

No fundo da memória, uma fera




É a violência que dita os nossos percursos

como a paixão que se extingue em mãos indomesticáveis,
 o pulsar das linguagens que dominamos
 dentro de cada cicatriz, uma memória
 dentro de cada reino, um tirano.
 é de violência que somos feitas
 como acordar para uma ressaca infinita
 e cancelar a noite, apagar os emails onde nos ofendemos.
há um animal selvagem no fim da memória
alimenta-se do furor das coisas
aquelas que são atiradas para o chão e partem
e se desfazem em tantos pedaços inalcançáveis até serem
a confusão que trazemos por dentro.

Sara F. Costa, 1987


domingo, 12 de julho de 2020

Momentos






Ponto assente: vamos morrer. A questão é quando e como. Na verdade, o como não chega a ser questão. Podemos morrer de morte súbita, de morte lenta, de acidente, assassinados, podemos pôr termo à vida. Que importa? A questão essencial é quando vamos morrer. Se esta dúvida nunca atormentou o leitor, ponha os olhos em Adalberto Pirralha. Morreria para saber quando seria o seu momento fatal.

               (excerto de Call Center)

          Henrique Manuel Bento Fialho, 1974

sábado, 11 de julho de 2020

Sabor/Rumor



esse oculto sabor das coisas fluidas!

 um silvo que celebra o sol
 como se um chamamento:
 é um favo, uma flor, a mamangava,
é o zoom de uma asa mordida,
 e a pulsação do silêncio miúdo
 celebrando a vida
do voo mínimo à breve meta florida,
 um zumzum de girassol
 em flor, em favo,
 um pouso, enfim,

 e a sangrenta paz pulsando
 em todo silêncio:

esse oculto rumor das coisas mínimas!


(autor não identificado)


sexta-feira, 10 de julho de 2020

Colecionando ...


        Frases delicadas

III


Ela é uma coleccionadora de homens.


Tão eficaz como o colector de impostos e o seu laço

 Perseguindo o gado de qualquer pobre lavrador.

 Prendeu-me com o olhar,

 Anestesiou-me com o seu perfume,

 Por fim enlaçou-me com os seus longos e escuros cabelos.

 

 Assim me marcou ela

Com o seu ferrete de fogo.


in Poemas de amor do Antigo Egipto (1567 e 1085, a.C.)

(tradução de Helder Moura Pereira)




terça-feira, 7 de julho de 2020

Batimentos e paragem



Um homem caminha na minha direcção.
Traz o coração a bater nas mãos.
 Aproxima-se de mim, estende-as e diz:
 - Por favor, faça com que páre.

   Marta Chaves, 1978


segunda-feira, 6 de julho de 2020

Visão periférica






            De tentar ver por todos os lados eu fico tonta
             e com o coração a milhas não devia falar

                                                    Helga Moreira, 1950

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Cigarras


https://www.youtube.com/watch?v=xytiUjfqMCA

Nunca as vi
Sempre  reconheci
a estridência do
 seu chamamento




Nada indicia
no canto da cigarra
que ela está perto do fim

Bashô, Japão (1644-1694)
- a tradução, do francês, é minha-

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