terça-feira, 28 de setembro de 2021

«O canto do homem»

 

 É a canção dos sonhadores

 que a si próprios tinham arrancado o coração

  e o levavam na sua mão direita 

         G Apollinaire

 

O canto do homem

 

Quis para a minha aflição

 ruas estreitas, a carícia

 nos meus ombros das boas paredes duras.

 Mas vós, ó homens

 alargaste-as com os vossos passos,

 com os vossos desejos,

 com o bafio do rum,

 do sexo e da cerveja.

 Erro nos vossos labirintos

 multicolores e estou cansado

 do meu lamento.

 

 Assim

 na vossa direção vim

 com o meu grande coração nu

 e vermelho, e os meus braços pesados

 com braçados de amor

 E os vossos braços na minha

 direção se estenderam muito abertos

 e os vossos punhos duros

 bateram-me duramente na face.

 Então eu vi:

 os vossos vis esgares

 e os vossos olhos babosos

 de injúrias.

 Então ouvi

 à minha volta o coaxar, pustulento,

 dos sapos. – Logo:

 solitário, sombrio,

 agora forte e a minha sombra

 minha única companheira fiel,

 projeto o arco do meu braço

 por sobre o céu.

 

Jacques Roumain, Haiti (1907-1944)

(a tradução dos 2 poemas é minha)



terça-feira, 21 de setembro de 2021

«Roterdão»

 

      Como se algum destino

       ou ser na terra

me perseguisse…

 

como se algum caminho eu soubesse

ou sítio houvesse para onde ir…

 

como se a cada passo avançasse

na direcção exacta

para um tempo todo ainda por vir…

 

como se acreditasse em roteiros

de navios que partem

e à espera de alguém acreditasse em paixões…

 

não conhecesse o enorme vazio

do deserto frio onde enregelam

tantos corações…

 

    como se não me perdesse sempre

na imensidão do espaço

e meus braços não me chegassem

para me estreitar num forte abraço…

 

     como se estivesse ainda à procura de algum rumo

visse surgir do nada Aladino envolto em fumo

numa lâmpada de chama ténue a esvair-se…

 

caminhando pelo cais de Roterdão

       guiada por meus pés gelados

     que fingem saber por onde vão


   Isabel Ruth (1940)

                 



segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Na iminência da morte

Impressions élégiaques sur lumière:


 l'avant-mort des escargots

       dévorateurs insatiables

de jardins.

         


    

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

«A noite no dia»


A noite nunca quer acabar e entregar-se

á luz. Por isso emaranha-se em certas coisas: obsidiana, corvos.

Até no solstício do verão, o dia do grande triunfo

da luz, quando os campos de girassóis se empanturram ao sol -

abrimos a melancia e cuspimos as sementes

negras, partículas da noite cintilando na erva.

 

Joseph Stroud, E.U.A. (1943)

- tradução de Luís F. Parrado-

 

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

« Os Pássaros»


 

Estou coberta de pássaros

Vibrantes de pena eriçada,

 Pica-paus, gaios azuis sobre os braços

 Carriças nos dedos.

 Pintarroxos

Na garganta

 E sobre os seios

Duas pombas.

 

 Ancas e ventre

 Com longas asas

 De serafins

 E sobre as pernas

 O leque verde das penas:

 O olho dos pavões!

 

 Mas eles levantam voo

 E eu fico nua

 Martirizada, debicada

 Ensanguentada.


Corinna Bille, Suiça (1912-1979) 

-tradução de Luís F. Parrado-


quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Depressão ...

 

         Tendo colhido a peónia

senti-me deprimido

         nessa noite

 

Buson, Japão (1715-1783)

-a tradução, do francês, é minha-