quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Nemésio e um pouco de Antero

CORRESPONDÊNCIA AO MAR

Quando penso no mar

A linha do horizonte é um fio de asas
E o corpo das águas é luar,

De puro esforço, as velas são memória
E o porto e as casas
Uma ruga de areia transitória.

Sinto a terra na força dos meus pulsos:
O mais é mar, que o remo indica,
E o bombeado do céu cheio de astros avulsos.

Eu, ali, uma coisa imaginada
Que o Eterno pica,
Vou na onda, de tempo carregada,

E desenrolo...
Sou movimento e terra delineada,
Impulso e sal de pólo a pólo.

Quando penso no mar, o mar regressa
A certa forma que só teve em mim ‑
Que onde acaba, o coração começa.

Começa pelo aro das estrelas
A compasso retido em mente pura
E avivado nos vidros das janelas.

Começa pelo peito das baías
A rosar-se e crescer na madrugada
Que lhe passa ao de leve as orlas frias.

E, de assim começar, é abstrato e imenso:
Frio como a evidência ponderada.
Quente como uma lágrima num lenço.

Coração começado pelos peixes,
És o golfo de todo o esquecimento
Na minha lembrança que me deixes,

E a rosa dos Ventos baralhada:
Meu coração, lágrima inchada,
Mais de metade pensamento.



O PAÇO DO MILHAFRE

À beira de água fiz erguer meu Paço
De Rei-Saudade das distantes milhas:
Meus olhos, minha boca eram as ilhas;
Pranto e cantiga andavam no sargaço.

Atlântico, encontrei no meu regaço
Algas, corais, estranhas maravilhas!
Fiz das gaivotas minhas próprias filhas,
Tive pulmões nas fibras do mormaço.

Enchi infusas nas salgadas ondas
E oleiro fui que as lágrimas redondas
Por fora fiz de vidro e, dentro, de água.

Os vagalhões da noite me salvavam
E, com partes iguais de sal e mágoa,
Minhas altas janelas se lavavam.


Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso, Coimbra, Revista de Portugal, 1938




                             Antero vagueia ainda no Paço do Milhafre.





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