sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Mátrias- extensas e diminutas



Havemos de voltar

Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar

Às nossas terras
vermelhas de café
brancas de algodão
verdes dos milharais
havemos de voltar

às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar

Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar

À frescura da mulemba
às  nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar

À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar

À bela pátria angolana
nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar

Havemos de voltar
À Angola libertada
Angola independente

Agostinho Neto, cadeia do Aljube, outubro de 1960


o «voltar» de Ilhéus II

…Todos voltaremos um dia,
mesmo os mais aventureiros, mesmo os mais ingratos,
os mais infelizes.
A ilha é um animal predador e voraz,
um animal hábil
que não deixa escapar as suas presas. … 

Fátima Araújo, A Qualidade do Sangue, Edições Mortas,1995

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Continentes imaginados






Esquecimento de mim


Outubro chegou dominado pelas chuvas,

e os outros meses seguiram-no até aqui.

De repente este tempo amontoado ocupa tudo,

o verde da casa, as cadeiras, a manta que cobre o soalho

quando no verão me recosto a ler.

Em mim não é possível o abandono do tempo,

a graça que o esquecimento traz consigo

haver-me-ia salvado desta invasão.

Agora devo caminhar com cuidado

para não me maltratar com tantas memórias.

Enganar-me-ei ou será verdade o que vou dizer?

Renuncio a esta visita, a solidão não me atemoriza.



Lauren Mendinueta, La vocación Suspendida
(esta tradução- e a de todos os outros poemas da L.M aqui publicados- foi feita por mim).

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

«Tô» estudando o Tom Zé.






Fotofílicos, lunáticos, falsos filogínios- filotecnia.


Ninguém Meu Amor

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos. 
Sebastião Alba, A noite dividida



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Malucos noctívagos e canibais- na língua de Descartes


Em 1981, Issei Sagawa -japonês residente em Paris- mata uma jovem estudante holandesa, que vai comendo parcimoniosamente até ser preso.


Este senhor não foi tão longe- mas parece que também enlouquecia durante a noite.

Garrafa vazia e abandonada, alguém cambaleia descalço na madrugada
Mural Maluco


domingo, 23 de fevereiro de 2014

Países, poetas, passado-presente, menina, jesus, papas, pedras, povo... música.



No meu país

No meu país
dardejado de sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
à flor da possível
geografia
um frémito cinde
as estações do ano.


Sebastião Alba, 'O Ritmo do Presságio'



                  As Causas

Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas .
essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.

Jorge Luis Borges, "História da Noite"
  ( Tradução de Fernando Pinto do Amaral
 )











sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Tom Zé




Malucos e sonhadores



A identidade dos contrários

Sonho que sou louco, e na minha loucura
Sou mais sensato que num sonho
Ou acordado, com medo que me tenham por louco
Meus companheiros de sonho.

Meu bom senso é diária loucura,
Para um mundo em vigília que atribui
Mais vigília e atenção mais funda
À razão do que a razão possui.

Sonho é minha vida diária, cada dia
Simula e dissimula até loucura
E razão serem ambas semelhantes,
E eu ajo enquanto sonho.

No sonho, o bom senso e a loucura,
Na loucura, o sonho e o dia a dia
Ligados, entre si todos semelhantes:
Sonhando ou acordado, sou louco e sou sensato.

       Edouard Roditi in As magias; versões de Herberto Helder; Hiena editora




quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Janela iluminada


Para a Camila e o Jonas,

A invenção do amor (excertos)

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e
detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa
esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
Embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções paras os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos.Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências
O perigo justifica-o.Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas (…)


(…)               É absoIutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio
das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam
ao temor do castigo

Que todos estejam a postos.Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem(…)

(...) Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas
Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los
É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa nas montanhas(...)



(…) Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boîtes      com orquestra privativa
Não estarão nunca aí Procurem-nos nas ruas suburbanas    onde nada acontece
A identificação é fácil
Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa
Um tiro no coração de cada um
Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar assobiando alegremente para junto dos filhos da mulher (…)


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Filme

                 

... uma imagem escreve no deserto
na noite desertada da tua cabeça,um outro filme...  Manuel Gusmão


(o couraçado Potemkin)

De Odessa, pela escada, quem se faz ou morre
e quem deveras queima, inútil, uma chama
de luz nenhuma e nem calor fugaz?

Contra o que os olhos dizem,
há quem viva e quem morra, mas inverso;
mais nada fora disto- só mistura
subtil, misteriosíssima, letal.


              Pedro Tamen, Poemas com cinema



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Valentim, Valentina, Vacas- metáfora,dançar só ou acompanhado




  « A Vaca existe apenas como metáfora. Os seres designados por tal nome,
        que se oferecem à ilusão dos sentidos, devem a sua existência
                  à nossa necessidade irremediável de consolo.» 
                                                     Bestiário, J.A.O.







domingo, 9 de fevereiro de 2014

inTemporal

Aos temporais, tempestades, furacões e fenómenos atmosféricos semelhantes são, a maior parte das vezes, atribuídos nomes femininos. Alguém me pode explicar porquê?

Stéphanie's night(mare), tempo para ouvir também alguns dos que permanecerão no éter...



«Doenças de pele»-conclusão, e os elefantes


A minha mão tremia, também me lembro, e a noite acumulou-se de repente dentro desse instante, uma noite compacta, irremovível. Estive à beira do pânico, mas olhei à volta e senti que vivia no lugar que eu próprio escolhera. Era um homem coordenado com os dias, entendendo que a matéria da minha existência, doce e dócil, afrontava a matéria do mundo e se amansava nos dedos desse mundo. Mas uma força dramática parecia libertar-se agora da magnética e frágil trama estendida entre mim e as pessoas. Pensei nelas, nas pessoas, e achei belos embora avulsos os seus rostos, e os gestos, a maneira como rodavam entre si, projetadas naquela curta luminosidade. Pensei que se moviam igualmente à minha volta, despedindo os seus lampejos rápidos, passando. Compreendi também o alcance do meu poder, iria a um médico? Talvez fosse. À noite tive um sonho incómodo onde se representavam umas escadas de pedra; do cimo delas, eu fazia um sinal imperceptível de despedida a alguém que se afastava embaixo. Atravessei portas que se abriam e fechavam à minha passagem sem eu lhes tocar. Depois senti-me cair de um telhado que lentamente se inclinava e por onde eu ia rolando. Havia um pântano no fundo, e mergulhei nele. Durante o sonho, a mão direita agarrava um punhado de brasas. Acordei bruscamente e acendi a luz. A mancha alargara; uma outra, ainda mais intensa, enchia-me a palma da mão. Foi assim que os novos dias invadiram a minha vida, e eram dias sombrios e ardentes, enquanto as manchas apanhavam a mão e avançavam já pelo pulso acima. Não era ainda o medo, mas as minhas convicções vacilaram e comecei a esconder a carne contaminada e a aproximar-me mais das pessoas. Abandonei a ideia de consultar um médico, pois cada vez menos desejava saber se era uma doença, ou que doença era. A mão ganhara uma insólita nobreza, outra, uma nobreza nova, terrível. Ela, que antes me dera o sentido de exemplo criador, a mão humanista, perdera o talento de ser hábil e construtora: agora era a mão nefasta, proibida entre os homens, subversiva. Vingava-se, com o anúncio desta figuração dramática, do que representara em plácida dignidade e inteligência sobre a desordem. Arranjei uma luva, e esta terceira mão, de pelica, movia-se sem jeito mas incólume, com a sua pureza artificial. Cheguei a possuir um talento menor de pelica. Mas aproximava-me mais e mais das pessoas, e tinha com elas conversas apaixonadas e instáveis. Principiava a amá-las com aflição; a amar esses rostos tremendos no seu prestígio distante, nessa espécie de cerimonial apartamento; e as palavras; as mãos com que, surpreendidas, tocavam na minha luva. Em casa, punha-me a escutar o rumor dos vizinhos, os seus passos pelos quartos, as frases mais altas, canções distraidamente trauteadas. Ia para a janela, por detrás das cortinas, e estremecia de emoção ao ver o remoinho humano das ruas. Eu sabia que a inocência é cúmplice do mal; ignorava apenas onde atam ambos o seu nó estrangulador. A mancha alastrava. Atingia um terço do antebraço, e era cada vez mais branca. A mão esquerda principiava também a ser atacada, e certa manhã descobri no meio da testa uma mancha redonda como um olho. A propagação foi rápida. Da raiz dos testículos subia já o florescimento maldito, enquanto pelos dedos e na cara as manchas cresciam sempre. Agora eu só saía à noite, a ocultas, comprando em lugares escusos alguma coisa para comer. E o meu amor às pessoas também crescia, varado por estranha violência, uma fraqueza, um pânico louco, uma veemente melancolia. Um dia comprei uma garrafa de aguardente e embebedei-me no quarto. Despi-me todo: era branco e repugnante. Tinham-me caído as sobrancelhas e os pelos do púbis e, por toda a parte, a carne tornara-se inconsistente. E vi então em mim, no meio da bebedeira, certa beleza tenebrosa, uma danação pela qual me apaixonei. Adormeci nu sobre o soalho chorando de áspera e árida alegria. Era forçoso afastar-me dos outros. Poderia acaso meter-me inteiro dentro de uma grande luva de pelica? E o meu amor pelas pessoas desenvolvia-se sempre. Ficava com os olhos húmidos, eu, só de imaginar que nas casas, nas ruas, debaixo do sol, ao vento que lhes agitava os cabelos, elas andavam, corriam, falavam, e sorriam e riam. Amava-as. Nu, defronte do alto espelho vivo, tocava devagar no corpo e sentia vómitos. Transformara-me num réptil branco. Contudo penso às vezes que não era, nem é, uma doença física: lepra ou coisa assim. Talvez o meu corpo esteja como dantes, fechado, intacto. Talvez a lepra me tenha atacado noutro sítio, numa região irrevogável. Talvez entre o amor e o mundo haja uma chaga pior – a memória mortal. Mas como pode a memória ser assim tão esperta e implacável, tão acerba, renovando o instante completo, o crime completo até dentro, tudo: o impulso nascido da mais obscura intransigência, o gosto que exprime inteiramente a biografia ou o poder do coração que não deixou escapar uma única parcela da atrocidade e da ciência? E renova também o vertiginoso arrepio do espetáculo: o corpo onde a ferida muito entranhadamente talha a carne em duas. Na casa ao lado cantavam. Um bafo de flores e terra molhada vinha de baixo. Um telefone tocava em qualquer parte. E, na treva do quarto, luzia a fundura do espelho. Eu estava nu, lá dentro.

                                            Herberto Helder, in Os passos em volta

sábado, 8 de fevereiro de 2014

« Doenças de pele» e enfer-marias


Doenças de pele

Numa noite de maio com grossas estrelas no ar largo, olhei para as minhas mãos e vi uma nódoa branca. Eu era um homem tranquilo, emocionalmente disponível, mas defendido contra as vertigens da dissipação. Convivia com bastante gente. Claro, não amava ninguém. E então vi de súbito a nódoa na mão direita. Gosto da mão direita, associo-a porventura à tradição de que é um nobre instrumento da obra, de que se articula com a própria profundidade dos nossos talentos. Estas eram as minhas ideias, e através delas ciência e serenidade ligavam-se às fontes naturais do mundo. O tempo, os lugares, a memória, a fortuna dos dias, fundara-os eu numa estratégia do desejo, de que tudo precisa fazer-se cúmplice. Considerava-me uma pessoa sem culpas, conhecendo o valor das regras, amando o vagar das terras e das estações. Organizara um conjunto de aforismos; talvez acreditasse mesmo na justiça. Havia de cultivar um talhão de rosas. Rosas tornam a alma persuasiva e expansiva; os gestos arredondam-se quando cuidamos de plantas. Mas estava sentado a ler, e vi então uma nódoa esbranquiçada na base do polegar. Supus que fosse a claridade, pensei depois que alguma substância deixara ali aquela marca. Desloquei a mão e a mancha ficou no mesmo sítio. E quando a esfreguei com o polegar da mão esquerda, nem de leve se alterou. Que pensar? Devia ser qualquer irritação de pele, um eczema branco. Bem. Maio é o mês de que mais gosto. O livro era excelente. Quanto ao resto, é óbvio que eu me alheava das pessoas que estavam ou entravam ou saíam da minha vida. Nutria-me de certo tipo de inteligência e cultura: um ar geral que se respira, forma ou modelo de ver e ser visto. Não me faltava uma esparsa ternura sem compromisso pelas pessoas e as coisas. Ceticismo manso; uma aproximação do mundo por assim dizer lacónica; atenção e renúncia. Mas quando me fui deitar, e pus a mão sobre a coberta da cama, notei que a mancha aumentara. Abrangia agora toda a base do dedo como um anel grosseiro. Lembro-me de que levantei a cabeça, um pouco de lado, e olhei para a janela onde as cortinas brancas pulsavam. Vinha da rua, de um jardim próximo, suponho que o aroma a cravos. Ouvi alguém falar, uma voz baixa de que só apanhei duas ou três palavras desligadas, de repente espantosas. Mas eram palavras banais, porventura sobre o tempo, os cravos, a noite, sei lá.(...)



                                                                  Herberto Helder, Os passos em volta 

Não cai em mim.






A chuva cai na poeira como no poema
de Li Bai. No sul
os dias têm olhos grandes
e redondos; no sul o trigo ondula,

as suas crinas dançam no vento,
são a bandeira
desfraldada da minha embarcação;

no sul a terra cheira a linho branco,
a pão na mesa,
o fulvo ardor da luz invade a água,
caindo na poeira, leve, acesa,

Como no poema.

 EUGÉNIO DE ANDRADE
Branco no Branco, 1984

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Azuis?

            
               AOS JACARANDÁS DE LISBOA


São eles que anunciam o verão.
Não sei doutra glória, doutro
paraíso: à sua entrada os jacarandás
estão em flor, um de cada lado.
E um sorriso, tranquila morada,
à minha espera.
O espaço a toda a roda
multiplica os seus espelhos, abre
varandas para o mar.
É como nos sonhos mais pueris:
posso voar quase rente 
às nuvens altas – irmão dos pássaros-,
perder-me
no ar.
  

.
       Eugénio de Andrade



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Para F.Saussure - a arbitrariedade do signo linguistico - e R.Jakobson


 A magnólia

A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor. 

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala. 

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
Perdido na tempestade, 

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim. 




luiza  neto jorge
o seu a seu tempo
poesia
assírio & alvim

1993

notas: o significante e o significado sem objecto a que se reportarem.
 A função poética da linguagem não pervertida pela publicidade.

Se traduzir





segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Quem são os autores destes textos?


«A inocência tem um preço. A maioria recusa pagá-lo. Lá em cima, cortejando o sol, o milhafre vigia.»

«…Na história do senhor de La Fontaine, a formiga responde à cigarra:«Cantaste, agora dança»; mas não foi uma formiga que respondeu- foram batalhões, regimentos de formigas. Depois ficaram por ali, à espera que a cigarra entregasse a alma ao criador, para lhe roerem os ossos.»

«Danse, danse, ma jolie danse
Danse, danse, mon esprit danse.
Celui qui danse chemine sur l’eau

Et à l’intérieur d’une flamme»