Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.
No meu país dardejado de sol e da caca dos gaios só há estâncias (de veraneio) na poesia. Nossos lábios a um metro e sessenta e tal do chão amarelecido dos símbolos abrem para fora por dois gomos de frio. Nossos lábios outonais, digo, outonais doze meses. No entanto à flor da possível geografia um frémito cinde as estações do ano.
Sebastião Alba, 'O Ritmo do Presságio'
As Causas
Todas as gerações e os poentes. Os
dias e nenhum foi o primeiro. A frescura da água na garganta De Adão. O
ordenado Paraíso. O olho decifrando a maior treva. O amor dos lobos ao
raiar da alba. A palavra. O hexâmetro. Os espelhos. A Torre de Babel e a
soberba. A lua que os Caldeus observaram. As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou. As maçãs feitas de ouro que há
nas ilhas. Os passos do errante labirinto. O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos. A moeda na boca de quem morre. O
peso de uma espada na balança. Cada vã gota de água na clepsidra. As
águias e os fastos, as legiões. Na manhã de Farsália Júlio César. A
penumbra das cruzes sobre a terra. O xadrez e a álgebra dos Persas. Os
vestígios das longas migrações. A conquista de reinos pela espada. A
bússola incessante. O mar aberto. O eco do relógio na memória. O rei que
pelo gume é justiçado. O incalculável pó que foi exércitos. A voz do
rouxinol da Dinamarca. A escrupulosa linha do calígrafo. O rosto do
suicida visto ao espelho. O ás do batoteiro. O ávido ouro. As formas de
uma nuvem no deserto. Cada arabesco do caleidoscópio. Cada remorso e
também cada lágrima. Foram precisas todas .essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.
Jorge Luis Borges, "História da
Noite" ( Tradução de Fernando Pinto do Amaral )
Sonho
que sou louco, e na minha loucura
Sou mais sensato que num sonho
Ou acordado, com medo que me tenham por louco
Meus companheiros de sonho.
Meu bom senso é diária loucura,
Para um mundo em vigília que atribui
Mais vigília e atenção mais funda
À razão do que a razão possui.
Sonho é minha vida diária, cada dia
Simula e dissimula até loucura
E razão serem ambas semelhantes,
E eu ajo enquanto sonho.
No sonho, o bom senso e a loucura,
Na loucura, o sonho e o dia a dia
Ligados, entre si todos semelhantes:
Sonhando ou acordado, sou louco e sou sensato.
Edouard Roditi in As magias; versões de Herberto Helder; Hiena
editora
A invenção do amor (excertos) Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e
detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa
esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
Embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia Há pesadas sanções paras os que auxiliarem os fugitivos Chamem as tropas aquarteladas na província
convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos.Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências
O perigo justifica-o.Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas (…)
(…) É absoIutamente
vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio
das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam
ao temor do castigo
Que todos
estejam a postos.Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem(…)
(...) Está em jogo a
cidade
o país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas
Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los
É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa nas montanhas(...)
(…) Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boîtes com orquestra privativa
Não estarão nunca aí Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece
A identificação é fácil
Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa
Um tiro no coração de cada um
Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar assobiando alegremente para junto dos filhos da mulher (…)
« A Vaca existe apenas como metáfora. Os seres designados
por tal nome,
que se oferecem à ilusão dos sentidos, devem a sua existência
à
nossa necessidade irremediável de consolo.»
Aos temporais, tempestades, furacões e fenómenos atmosféricos semelhantes são, a maior parte das vezes, atribuídos nomes femininos. Alguém me pode explicar porquê? Stéphanie's night(mare), tempo para ouvir também alguns dos que permanecerão no éter...
A minha mão tremia, também me lembro, e a noite acumulou-se de repente dentro
desse instante, uma noite compacta, irremovível. Estive à beira do pânico, mas
olhei à volta e senti que vivia no lugar que eu próprio escolhera. Era um homem
coordenado com os dias, entendendo que a matéria da minha existência, doce e
dócil, afrontava a matéria do mundo e se amansava nos dedos desse mundo. Mas uma
força dramática parecia libertar-se agora da magnética e frágil trama estendida
entre mim e as pessoas. Pensei nelas, nas pessoas, e achei belos embora avulsos
os seus rostos, e os gestos, a maneira como rodavam entre si, projetadas naquela
curta luminosidade. Pensei que se moviam igualmente à minha volta, despedindo os
seus lampejos rápidos, passando. Compreendi também o alcance do meu poder, iria
a um médico? Talvez fosse. À noite tive um sonho incómodo onde se representavam
umas escadas de pedra; do cimo delas, eu fazia um sinal imperceptível de
despedida a alguém que se afastava embaixo. Atravessei portas que se abriam e
fechavam à minha passagem sem eu lhes tocar. Depois senti-me cair de um telhado
que lentamente se inclinava e por onde eu ia rolando. Havia um pântano no fundo,
e mergulhei nele. Durante o sonho, a mão direita agarrava um punhado de brasas.
Acordei bruscamente e acendi a luz. A mancha alargara; uma outra, ainda mais
intensa, enchia-me a palma da mão. Foi assim que os novos dias invadiram a minha
vida, e eram dias sombrios e ardentes, enquanto as manchas apanhavam a mão e
avançavam já pelo pulso acima. Não era ainda o medo, mas as minhas convicções
vacilaram e comecei a esconder a carne contaminada e a aproximar-me mais das
pessoas. Abandonei a ideia de consultar um médico, pois cada vez menos desejava
saber se era uma doença, ou que doença era. A mão ganhara uma insólita nobreza,
outra, uma nobreza nova, terrível. Ela, que antes me dera o sentido de exemplo
criador, a mão humanista, perdera o talento de ser hábil e construtora: agora
era a mão nefasta, proibida entre os homens, subversiva. Vingava-se, com o
anúncio desta figuração dramática, do que representara em plácida dignidade e
inteligência sobre a desordem. Arranjei uma luva, e esta terceira mão, de
pelica, movia-se sem jeito mas incólume, com a sua pureza artificial. Cheguei a
possuir um talento menor de pelica. Mas aproximava-me mais e mais das pessoas, e
tinha com elas conversas apaixonadas e instáveis. Principiava a amá-las com
aflição; a amar esses rostos tremendos no seu prestígio distante, nessa espécie
de cerimonial apartamento; e as palavras; as mãos com que, surpreendidas,
tocavam na minha luva. Em casa, punha-me a escutar o rumor dos vizinhos, os seus
passos pelos quartos, as frases mais altas, canções distraidamente trauteadas.
Ia para a janela, por detrás das cortinas, e estremecia de emoção ao ver o
remoinho humano das ruas. Eu sabia que a inocência é cúmplice do mal; ignorava
apenas onde atam ambos o seu nó estrangulador. A mancha alastrava. Atingia um
terço do antebraço, e era cada vez mais branca. A mão esquerda principiava
também a ser atacada, e certa manhã descobri no meio da testa uma mancha redonda
como um olho. A propagação foi rápida. Da raiz dos testículos subia já o
florescimento maldito, enquanto pelos dedos e na cara as manchas cresciam
sempre. Agora eu só saía à noite, a ocultas, comprando em lugares escusos alguma
coisa para comer. E o meu amor às pessoas também crescia, varado por estranha
violência, uma fraqueza, um pânico louco, uma veemente melancolia. Um dia
comprei uma garrafa de aguardente e embebedei-me no quarto. Despi-me todo: era
branco e repugnante. Tinham-me caído as sobrancelhas e os pelos do púbis e, por
toda a parte, a carne tornara-se inconsistente. E vi então em mim, no meio da
bebedeira, certa beleza tenebrosa, uma danação pela qual me apaixonei. Adormeci
nu sobre o soalho chorando de áspera e árida alegria. Era forçoso afastar-me dos
outros. Poderia acaso meter-me inteiro dentro de uma grande luva de pelica? E o
meu amor pelas pessoas desenvolvia-se sempre. Ficava com os olhos húmidos, eu, só
de imaginar que nas casas, nas ruas, debaixo do sol, ao vento que lhes agitava
os cabelos, elas andavam, corriam, falavam, e sorriam e riam. Amava-as. Nu,
defronte do alto espelho vivo, tocava devagar no corpo e sentia vómitos.
Transformara-me num réptil branco. Contudo penso às vezes que não era, nem é,
uma doença física: lepra ou coisa assim. Talvez o meu corpo esteja como dantes,
fechado, intacto. Talvez a lepra me tenha atacado noutro sítio, numa região
irrevogável. Talvez entre o amor e o mundo haja uma chaga pior – a memória
mortal. Mas como pode a memória ser assim tão esperta e implacável, tão acerba,
renovando o instante completo, o crime completo até dentro, tudo: o impulso
nascido da mais obscura intransigência, o gosto que exprime inteiramente a
biografia ou o poder do coração que não deixou escapar uma única parcela da
atrocidade e da ciência? E renova também o vertiginoso arrepio do espetáculo: o
corpo onde a ferida muito entranhadamente talha a carne em duas. Na casa ao lado
cantavam. Um bafo de flores e terra molhada vinha de baixo. Um telefone tocava
em qualquer parte. E, na treva do quarto, luzia a fundura do espelho. Eu estava
nu, lá dentro.
Doenças
de pele
Numa noite de maio com grossas estrelas no ar largo, olhei para as minhas mãos
e vi uma nódoa branca. Eu era um homem tranquilo, emocionalmente disponível,
mas defendido contra as vertigens da dissipação. Convivia com bastante gente.
Claro, não amava ninguém. E então vi de súbito a nódoa na mão direita. Gosto da
mão direita, associo-a porventura à tradição de que é um nobre instrumento da
obra, de que se articula com a própria profundidade dos nossos talentos. Estas
eram as minhas ideias, e através delas ciência e serenidade ligavam-se às
fontes naturais do mundo. O tempo, os lugares, a memória, a fortuna dos dias,
fundara-os eu numa estratégia do desejo, de que tudo precisa fazer-se cúmplice.
Considerava-me uma pessoa sem culpas, conhecendo o valor das regras, amando o
vagar das terras e das estações. Organizara um conjunto de aforismos; talvez
acreditasse mesmo na justiça. Havia de cultivar um talhão de rosas. Rosas
tornam a alma persuasiva e expansiva; os gestos arredondam-se quando cuidamos
de plantas. Mas estava sentado a ler, e vi então uma nódoa esbranquiçada na
base do polegar. Supus que fosse a claridade, pensei depois que alguma
substância deixara ali aquela marca. Desloquei a mão e a mancha ficou no mesmo
sítio. E quando a esfreguei com o polegar da mão esquerda, nem de leve se
alterou. Que pensar? Devia ser qualquer irritação de pele, um eczema branco.
Bem. Maio é o mês de que mais gosto. O livro era excelente. Quanto ao resto, é
óbvio que eu me alheava das pessoas que estavam ou entravam ou saíam da minha
vida. Nutria-me de certo tipo de inteligência e cultura: um ar geral que se
respira, forma ou modelo de ver e ser visto. Não me faltava uma esparsa ternura
sem compromisso pelas pessoas e as coisas. Ceticismo manso; uma aproximação do
mundo por assim dizer lacónica; atenção e renúncia. Mas quando me fui deitar, e
pus a mão sobre a coberta da cama, notei que a mancha aumentara. Abrangia agora
toda a base do dedo como um anel grosseiro. Lembro-me de que levantei a cabeça,
um pouco de lado, e olhei para a janela onde as cortinas brancas pulsavam.
Vinha da rua, de um jardim próximo, suponho que o aroma a cravos. Ouvi alguém
falar, uma voz baixa de que só apanhei duas ou três palavras desligadas, de
repente espantosas. Mas eram palavras banais, porventura sobre o tempo, os
cravos, a noite, sei lá.(...)
São eles que anunciam o verão. Não sei doutra glória, doutro paraíso: à sua entrada os jacarandás estão em flor, um de cada lado. E um sorriso, tranquila morada, à minha espera. O espaço a toda a roda multiplica os seus espelhos, abre varandas para o mar. É como nos sonhos mais pueris: posso voar quase rente
«A inocência tem um preço. A maioria recusa pagá-lo. Lá em
cima, cortejando o sol, o milhafre vigia.»
«…Na história do senhor de La Fontaine, a formiga responde à
cigarra:«Cantaste, agora dança»; mas não foi uma formiga que respondeu- foram
batalhões, regimentos de formigas. Depois ficaram por ali, à espera que a
cigarra entregasse a alma ao criador, para lhe roerem os ossos.»