Doenças de pele
Numa noite de maio com grossas estrelas no ar largo, olhei para as minhas mãos e vi uma nódoa branca. Eu era um homem tranquilo, emocionalmente disponível, mas defendido contra as vertigens da dissipação. Convivia com bastante gente. Claro, não amava ninguém. E então vi de súbito a nódoa na mão direita. Gosto da mão direita, associo-a porventura à tradição de que é um nobre instrumento da obra, de que se articula com a própria profundidade dos nossos talentos. Estas eram as minhas ideias, e através delas ciência e serenidade ligavam-se às fontes naturais do mundo. O tempo, os lugares, a memória, a fortuna dos dias, fundara-os eu numa estratégia do desejo, de que tudo precisa fazer-se cúmplice. Considerava-me uma pessoa sem culpas, conhecendo o valor das regras, amando o vagar das terras e das estações. Organizara um conjunto de aforismos; talvez acreditasse mesmo na justiça. Havia de cultivar um talhão de rosas. Rosas tornam a alma persuasiva e expansiva; os gestos arredondam-se quando cuidamos de plantas. Mas estava sentado a ler, e vi então uma nódoa esbranquiçada na base do polegar. Supus que fosse a claridade, pensei depois que alguma substância deixara ali aquela marca. Desloquei a mão e a mancha ficou no mesmo sítio. E quando a esfreguei com o polegar da mão esquerda, nem de leve se alterou. Que pensar? Devia ser qualquer irritação de pele, um eczema branco. Bem. Maio é o mês de que mais gosto. O livro era excelente. Quanto ao resto, é óbvio que eu me alheava das pessoas que estavam ou entravam ou saíam da minha vida. Nutria-me de certo tipo de inteligência e cultura: um ar geral que se respira, forma ou modelo de ver e ser visto. Não me faltava uma esparsa ternura sem compromisso pelas pessoas e as coisas. Ceticismo manso; uma aproximação do mundo por assim dizer lacónica; atenção e renúncia. Mas quando me fui deitar, e pus a mão sobre a coberta da cama, notei que a mancha aumentara. Abrangia agora toda a base do dedo como um anel grosseiro. Lembro-me de que levantei a cabeça, um pouco de lado, e olhei para a janela onde as cortinas brancas pulsavam. Vinha da rua, de um jardim próximo, suponho que o aroma a cravos. Ouvi alguém falar, uma voz baixa de que só apanhei duas ou três palavras desligadas, de repente espantosas. Mas eram palavras banais, porventura sobre o tempo, os cravos, a noite, sei lá.(...)
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