domingo, 9 de fevereiro de 2014

«Doenças de pele»-conclusão, e os elefantes


A minha mão tremia, também me lembro, e a noite acumulou-se de repente dentro desse instante, uma noite compacta, irremovível. Estive à beira do pânico, mas olhei à volta e senti que vivia no lugar que eu próprio escolhera. Era um homem coordenado com os dias, entendendo que a matéria da minha existência, doce e dócil, afrontava a matéria do mundo e se amansava nos dedos desse mundo. Mas uma força dramática parecia libertar-se agora da magnética e frágil trama estendida entre mim e as pessoas. Pensei nelas, nas pessoas, e achei belos embora avulsos os seus rostos, e os gestos, a maneira como rodavam entre si, projetadas naquela curta luminosidade. Pensei que se moviam igualmente à minha volta, despedindo os seus lampejos rápidos, passando. Compreendi também o alcance do meu poder, iria a um médico? Talvez fosse. À noite tive um sonho incómodo onde se representavam umas escadas de pedra; do cimo delas, eu fazia um sinal imperceptível de despedida a alguém que se afastava embaixo. Atravessei portas que se abriam e fechavam à minha passagem sem eu lhes tocar. Depois senti-me cair de um telhado que lentamente se inclinava e por onde eu ia rolando. Havia um pântano no fundo, e mergulhei nele. Durante o sonho, a mão direita agarrava um punhado de brasas. Acordei bruscamente e acendi a luz. A mancha alargara; uma outra, ainda mais intensa, enchia-me a palma da mão. Foi assim que os novos dias invadiram a minha vida, e eram dias sombrios e ardentes, enquanto as manchas apanhavam a mão e avançavam já pelo pulso acima. Não era ainda o medo, mas as minhas convicções vacilaram e comecei a esconder a carne contaminada e a aproximar-me mais das pessoas. Abandonei a ideia de consultar um médico, pois cada vez menos desejava saber se era uma doença, ou que doença era. A mão ganhara uma insólita nobreza, outra, uma nobreza nova, terrível. Ela, que antes me dera o sentido de exemplo criador, a mão humanista, perdera o talento de ser hábil e construtora: agora era a mão nefasta, proibida entre os homens, subversiva. Vingava-se, com o anúncio desta figuração dramática, do que representara em plácida dignidade e inteligência sobre a desordem. Arranjei uma luva, e esta terceira mão, de pelica, movia-se sem jeito mas incólume, com a sua pureza artificial. Cheguei a possuir um talento menor de pelica. Mas aproximava-me mais e mais das pessoas, e tinha com elas conversas apaixonadas e instáveis. Principiava a amá-las com aflição; a amar esses rostos tremendos no seu prestígio distante, nessa espécie de cerimonial apartamento; e as palavras; as mãos com que, surpreendidas, tocavam na minha luva. Em casa, punha-me a escutar o rumor dos vizinhos, os seus passos pelos quartos, as frases mais altas, canções distraidamente trauteadas. Ia para a janela, por detrás das cortinas, e estremecia de emoção ao ver o remoinho humano das ruas. Eu sabia que a inocência é cúmplice do mal; ignorava apenas onde atam ambos o seu nó estrangulador. A mancha alastrava. Atingia um terço do antebraço, e era cada vez mais branca. A mão esquerda principiava também a ser atacada, e certa manhã descobri no meio da testa uma mancha redonda como um olho. A propagação foi rápida. Da raiz dos testículos subia já o florescimento maldito, enquanto pelos dedos e na cara as manchas cresciam sempre. Agora eu só saía à noite, a ocultas, comprando em lugares escusos alguma coisa para comer. E o meu amor às pessoas também crescia, varado por estranha violência, uma fraqueza, um pânico louco, uma veemente melancolia. Um dia comprei uma garrafa de aguardente e embebedei-me no quarto. Despi-me todo: era branco e repugnante. Tinham-me caído as sobrancelhas e os pelos do púbis e, por toda a parte, a carne tornara-se inconsistente. E vi então em mim, no meio da bebedeira, certa beleza tenebrosa, uma danação pela qual me apaixonei. Adormeci nu sobre o soalho chorando de áspera e árida alegria. Era forçoso afastar-me dos outros. Poderia acaso meter-me inteiro dentro de uma grande luva de pelica? E o meu amor pelas pessoas desenvolvia-se sempre. Ficava com os olhos húmidos, eu, só de imaginar que nas casas, nas ruas, debaixo do sol, ao vento que lhes agitava os cabelos, elas andavam, corriam, falavam, e sorriam e riam. Amava-as. Nu, defronte do alto espelho vivo, tocava devagar no corpo e sentia vómitos. Transformara-me num réptil branco. Contudo penso às vezes que não era, nem é, uma doença física: lepra ou coisa assim. Talvez o meu corpo esteja como dantes, fechado, intacto. Talvez a lepra me tenha atacado noutro sítio, numa região irrevogável. Talvez entre o amor e o mundo haja uma chaga pior – a memória mortal. Mas como pode a memória ser assim tão esperta e implacável, tão acerba, renovando o instante completo, o crime completo até dentro, tudo: o impulso nascido da mais obscura intransigência, o gosto que exprime inteiramente a biografia ou o poder do coração que não deixou escapar uma única parcela da atrocidade e da ciência? E renova também o vertiginoso arrepio do espetáculo: o corpo onde a ferida muito entranhadamente talha a carne em duas. Na casa ao lado cantavam. Um bafo de flores e terra molhada vinha de baixo. Um telefone tocava em qualquer parte. E, na treva do quarto, luzia a fundura do espelho. Eu estava nu, lá dentro.

                                            Herberto Helder, in Os passos em volta

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