quarta-feira, 29 de abril de 2015

Monte Cara

«… de passagem»


Quero ir como vim, silencioso e sem afoitos.
 Como a lua desvirginando o dia e anunciando o
                                                          anoitecer.
                                Lentamente e sem barulho.
 Aliás, nada há de novo nesta transmigração que
                                                                finda
 para merecer o barulho que não fiz.



Spargo, Cabo Verde (1957)




terça-feira, 28 de abril de 2015

Caminhos de sede


Forgetfulness
 Forgetfulness is like a song
That, freed from beat and measure, wanders.
Forgetfulness is like a bird whose wings are reconciled,
Outspread and motionless, --
A bird that coasts the wind unwearyingly.

Forgetfulness is rain at night,
Or an old house in a forest, -- or a child.
Forgetfulness is white, -- white as a blasted tree,
And it may stun the sybil into prophecy,
Or bury the Gods.

I can remember much forgetfulness.

Harold Hart Crane, EUA , (1899-1932)


domingo, 26 de abril de 2015

Mindelo

Gonçalviana

De tanto temer viagens longínquas
 e interrogações mais metafísicas
 deixou-se ficar por aqui, o mestre
 Circulava por Mindelo
 como Joyce pela sua Dublin
 e se banhava neste mar
 com a simplicidade dos ascetas no Ganges
 Tinha certos defeitos - é certo
 Passava por nós às vezes como se não fosse
 deste mundo

José Vicente Lopes, Cabo Verde (1959)




sábado, 25 de abril de 2015

Haver











Há um galo sozinho à beira do cais
Há um cão que s’arrasta para lá.
Há um mundo que deixam nos rastos.

Há depois um barco que parte lento.
Uma lágrima que disserta sobre o olvido.
Uma sereia que ouve saudade dos que partem.

Uma cidade feita de azul espúmea desoras,
um sonho que desperta toda a madrugada
E um poema que no mar somente não se enjoa.



Valdemar Valentino Velhinho Rodrigues, Cabo Verde (1961)

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Receitas






                 RECEITA PARA FAZER UM HERÓI

                      Tome-se um homem,
                      Feito de nada, como nós,
                      E em tamanho natural.
                      Embeba-se-lhe a carne,
                      Lentamente,
                      Duma certeza aguda, irracional,
                      Intensa como o ódio ou como a fome.
                      Depois, perto do fim,
                      Agite-se um pendão
                      E toque-se um clarim.

                       Serve-se morto.

       Reinaldo Ferreira, Moçambique (1922- 1959)

sábado, 4 de abril de 2015

Percursos

       A estrada invisível

Os armazéns perfilam-se quietos.
   Por trás uma estrada
    onde esvoaçam os pardais.

Por trás dos armazéns
  o vai e vem dos pardais
     traça um percurso invisível.

    Buson, Japão (1715-1783)




Vendo ouvindo e voando





sexta-feira, 3 de abril de 2015

Elegias: romana e lusitana


[Da Primeira Elegia Romana]

Quando (ao lembrá-lo ainda as veias me tremem de ternura)
meio ébrio saí de sua casa amada,

através de ruas efervescentes dos últimos labores do dia,
de rumores, carruagens, roucos gritos,

súbito senti, do fundo peito, toda a alma elevar-se,
cupidamente, e no alto vi, sobre os estreitos muros,

romper a ígnea zona por onde o crepúsculo do Outono,
céu húmido e vastas nuvens, incendiava Roma.

Nem da hora nem dos lugares me sentia consciente. Seria
um sonho falaz a possuir-me? Ou todas minhas cônscias

alegrias eram coisas a produzir em torno um insólito lume?
Não o sabia. Mas todas as coisas produziam lume.

Imóveis, ardiam as nuvens, e, qual sangue de monstros
assassinados, de seus flancos rompiam rubros rios.

Gabriele d'Annunzio, Itália, 1863 -1938.

(tradução de David Mourão-Ferreira)



 1989

Rumori lontani agitano
Ogni olmo sotto il sole dormiente
Melanconia si siede in piazze immense d’
Arancio tramonto ricoperta

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Cinema: Manoel de Oliveira



Kino

Cá estou sentado
 ao fundo de tudo
 sozinho de todo
 no cinema
 e apetecia-me
 estar morto
 com lágrimas
 nos olhos,
 durante anos seguidos,
 e os dois braços
 apoiados cada um do seu lado da cadeira.

Wolf Wondratscheck, Alemanha, 1943

(trad. de Alberto Pimenta)



 Manoel de Oliveira nasceu e morreu na Invicta.
 Viveu mais de 100 anos, parte dos quais filmando. O subtil movimento das suas imagens, inscreveu o Porto na luz, e o país no mundo.
Gostava de passear pela memória colectiva, convocando sentimentos fortes, de preferência inacabados.
Também imortalizou louras - bem singulares, por sinal…
Narrou, com mestria, a vã glória de mandar/amar e certamente continuará a impressionar os vindouros com as películas que impressionou.

P.S.  Para os interessados: o segredo da longevidade? «Ele dizia-nos sempre isto: ‘cheguei a velho porque fiz muito desporto no Sport Club do Porto’ (risos). Eu quero acreditar que isso é mesmo verdade»