quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A girafa

 Hoje é o Dia de Todos os Deuses

Hoje é o dia de todos os deuses.
A maresia subirá breve
ao terceiro andar.

Virá como quem pede mais um pouco
desta tarde.
Deixo-me ficar enquanto vou

indecisa como quem não sabe.
Se escolho rainha se rei
só eu decido, só eu sei.

Hoje é o dia de todos os deuses.
A qualquer deles vou pedir
não só a Zeus, não só a Argos,

não só a Afrodite,
a que o amor consente de todos os modos,
à brisa pedirei

que me deixe partir
a voz em arco
e tudo fruir de outro modo

Ainda que hoje não seja o dia
de todos os deuses
direi
não tenho género ou identificação bastante

que se assemelhe
ao estar
preto no preto branco no branco

Helga Moreira


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Velha árvore

Velha árvore plantada à beira de um caminho.

 Muitas flores nos ramos, a relva a seus pés.

 Os que passam não viram a árvore na sua juventude,

 Mas ela viu-os a todos envelhecer pouco a pouco.

 

               Hsu Ning, China (Séc. IX) 



domingo, 25 de outubro de 2020

Pensamos

E penso


a face fraca do poema/ a metade na página

partida

Mas calo a face dura

flor apagada no sonho

Eu penso

A dor visível do poema/ a luz prévia

Dividida

Mas calo a superfície negra

pânico iminente do nada.


Ana Cristina César, Brasil (1952-1983)

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Poemário Formoso

Por favor, recomenda-me um poemário

                                                                                                                                                                    Queria um poemário
que nunca tenha magoado o coração de uma pessoa
que nunca antes tenha tido o coração partido
e que nenhuma das suas palavras
me pudesse fazer pensar em ti 

Queria um poemário
que usando só algumas palavras
pudesse dizer o decorrer da minha vida toda
queria que as suas palavras nunca tivessem forçado
a desaparecer um bosque na fronteira, nem uma cultura a esconder-se

Queria um poemário
que não envolvesse imaginação, superstições ou amor
queria que as suas palavras se tornassem realidade
e fossem provas desta vida

                                                                                                                                                                      Queria um poemário razoável                                                                                                                      que cancelasse tudo o que não é apropriado ao momento                                                                      sobre o meu corpo                                                                                                                                        o teu sexo                                                                                                                                                      e toda esta época que é tua                                                                                                                            e a tua distância nela

Queria um poemário que todas as pessoas recomendassem                                                                         queria que as suas palavras
fossem capazes de fazer que tu ficasses para sempre

                                

Pan Bo Ling (Taipé, 1993)

     ( a tradução- do espanhol-é minha) 


 


domingo, 18 de outubro de 2020

Dizem

 

Dizem que a vida me foi dada à borla.
Só eu sei quanto isso me custa.


Dizem que não penso nos outros.
Deus sabe o tempo que gasto a pensar nisso.


Dizem que tenho um ego agigantado.
É a única coisa que tenho.


Dizem que vou acabar sozinho.
Têm razão.


Miguel Martins (1969)




sábado, 17 de outubro de 2020

Embonecrada

 

Jenny

ela era toda porcelana de terra,
flores predominantes no odor jovem
juventude fabricada
no dinheiro ilegal dos casinos.
era toda ela morangos suculentos
entre as pernas
bolos coreanos em forma de coração
cappuccinos dignos de instagram.
olhos de amêndoa em época de Páscoa
como quem quer comer o corpo e o sangue.
tinha uma altura nobre
e um cabelo livre.
tinha lágrimas de pérolas
desejos em forma de diamantes.
ele queria alguém real,
ela queria um príncipe português
com um intelecto barbudo.
ele queria ler Lu Xun,
ela queria jantar de amêijoas à beira mar.
ele voltou para a terra,
ela cometeu o mais elegante suicídio,
deixando os brincos Chanel no cadáver pendurado na sala de jantar.

Sara F. Costa, 1987




sexta-feira, 16 de outubro de 2020

No dia do pão

 

O quotidiano "não"

Estamos todos bem servidos
de solidão.
De manhã a recolhemos
do saco, em lugar de pão.

Pão é claro que temos
(não sou exageradão)
mas esta imagem do saco
contendo um pequeno «não»

não figura nesta prosa
assim do pé para a mão,
pois o saco utilizado,
que pode ser o do pão,

recebe modestamente
a corriqueira fracção
desse alimento que é
tão distribuído, tão

a domicílio como
o leite ou o pão.
Mas esse leitor aí
(bem real!) já diz que não,

que nunca viu no tal saco
o tal «não».
Ao que o poeta responde,
sem maior desilusão:

- Para dizer a verdade,
eu também não...
Mas estava confiante
na sua imaginação

(ou na minha...) e que sentia
como eu a solidão
e quanto ela é objecto
da carinhosa atenção

de quem hoje nos fornece
o quotidiano «não»,
por todos os meios, desde
a fingida distracção,

até ao entre-parêntesis
de qualquer reclusão...

             Alexandre O´Neill (1924-1986)





domingo, 11 de outubro de 2020

Ítaca - vista pela Nobel

Ítaca 

 

O ser amado não

precisa viver. O ser amado

vive na cabeça. O tear 

é para os pretendentes, suspenso 

como uma harpa de brancos filamentos. 

Ele era duas pessoas. 

Era corpo e voz, o fácil 

magnetismo de um homem vivo, e então 

o sonho revelado ou a imagem 

formada pela mulher manejando o tear, 

ali sentada num salão cheio 

de homens de mentes literais. 

Se te causa pena 

o mar enganado que tentou 

levá-lo para sempre 

e devolveu apenas o primeiro, 

o verdadeiro marido, deverias 

sentir pena desses homens: eles não sabem 

para o que estão olhando; 

eles não sabem que quando alguém ama dessa maneira 

o manto se torna um vestido de casamento.

 

Louise Gluck

(tradução de Pedro Gonzaga)