sábado, 30 de abril de 2022

Mulheres e andorinhas

 andorinhas do anoitecer

os nossos corações

temem o amanhecer

há linhas de fogo

no quotidiano

instaladas

que

atravessam

vidas

cortam

pontes

destroem estradas

doravante

nem vós nos céus

podereis

voar descansadas




 

 


 

quarta-feira, 27 de abril de 2022

«Facto/ Fado»

 

(...) É facil estar sempre alterando o jogo

 Variando o sentido das regras ad libitum

 ad hoc, ad gloriam, ad honores, ad nauseam

 ad verbum, ad litteram, sine ira et studio

 Pescando na excepção sempre outra coisa

 Dando ditos por não ditos, esquecendo o ter dito

 Com toda a simplicidade, sem má fé nenhuma

 Só porque viver é isto, uma salada de sucederes

 E a gente é pouco, a gente é assim mesmo, pequenos

 E estamos sózinhos habitando um saco de pele.

 

Mudamos vírgulas, corrigimos provas

 Passamos inquietos sobre as cristas volúveis

 De inquietos ditongos, alteramos as pautas

 Lavamos as mãos em sangue indelével...

Encerramos momentos-boda por garrafas gregárias

 E o nosso rasto é um eco pungente, fios de cheiro

 Talhando contornos à neblina, modelando fantasmas

 Que ficam para trás para que acreditemos

 Que viver não foi assim tão completamente inútil

E que ir vivendo não é nocivo, não é só irracional...

                                        (...)

                    João Pedro Grabato Dias

           (in Facto/Fado edição do autor, Porto, 1986)



sexta-feira, 22 de abril de 2022

Terra

fazem-se previsões

anunciam- se prazos

pairam ameaças

e culpabilidade

Especialistas emitem

abalizados pareceres

ouvidos com ansiedade

embora nem sempre iguais

No meio da confusão

somos então convidados

ora a ficar confinados

ora a participar

mais e mais

num movimento

       que

não deve parar

o dos três erres

marchas pelo clima

             greves

para o mundo melhorar

ou a nossa condição

A culpa nem é do mosquito

pois bem vamos é claro

a origem acredito

   tem por nome

        predação. 

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Da guerra e da Terra no papel

Anónimas fardas

onde o sangue

em verde cinza coagulou

podres de abandono

sobre o teu corpo que

de transtorno

mudo e calvo se quedou;

a ti ainda se encostam

esqueletos carbonizados

  das máquinas que

     num vaivém

     a guerra sustém

És da ganância

refém

de homens em armas

 de máquinas letais

       Porém

Quem as fabrica quem as encomenda

Quem as vende quem compra mais

        Quem as oferece também

       Não sabemos bem…

     queimada Terra-mãe

    mas gostamos de em ti viver

                    em paz

 

 - A guerra sempre existiu é

 uma espécie de fatalidade,

                    rapaz,

 fonte de progresso no entanto

aceleração da história contudo…

 - rapace desumanidade!

   barbaridade total!

    entre mentes horror …

fonte de riqueza

                              sobretudo

para os senhores da guerra

      a quem a morte apetece.

 Certo-certo é morrermos todos

     e esses também-

                                  -acontece…

  Ó quanto aguentas Mãe- terra

enquanto o teu corpo esmorece. 





sábado, 9 de abril de 2022

Remendar

 Como quem remenda

  peúgas, remendo a mente

 e prossigo a vida

Yoshino Yoshiko 

Japão,1915



quinta-feira, 7 de abril de 2022

Dá-me luz!

 

Em vez de pássaros, o céu de Lisboa está infestado pelo lento movimento das gruas que,

erguendo-se silenciosamente na vertical e na horizontal, noite e dia constroem gaiolas grandes

para humanos abastados: primeira e óbvia reflexão- ovo de Colombo, fruto da constatação…

Ao lusco-fusco esses monstros de metal invadem o fogo amortecido pelas nuvens e tentam

alcançar a lua. Deixam-nos uns quadradinhos-qual rede lassa-pelos quais podemos espreitar:

o céu já não nos pertence.

Entre o trabalho e a casa viajam os menos abastados; de olhos fechados, tentam descansar;

têm à sua espera uma nesga entre as habitações aonde vão chegar e onde toscas tábuas e

 instáveis telhas avançam, tapando-lhes a luz, privando-os do que de todos deveria ser.

    Sob estes telhados, que são de zinco por vezes, há vielas de terra batida ou, na melhor

das hipóteses, um pátio comum onde penduram a roupa e os filhos, ao regressarem da escola,

jogam à bola.

Logo, muitos deles acabam por procurar o céu em douradas igrejas, que têm um pé direito

muito alto e uma abóbada iluminada por vitrais de variadas cores.

domingo, 3 de abril de 2022

Alba


Amanhecer

Quando a noite morreu no glaciar umas mãos jovens surgiram das nuvens, entraram no meu peito e

abriram as fechaduras das portas para que a luz do dia pusesse em fuga a treva. Já não quero continuar a

andar pelos campos a decifrar os mistérios pagãos das pedras, mas apenas descansar silencioso no

regaço fresco e matinal do páramo, olhando com olhos infantis as lágrimas alegres que verteu a noite

por ter dado à luz um dia tão formoso.

 

                                                               Einar Bragi, Islândia (1921-2005) 

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Acabaram-se os anos dourados?

 

Quando andava na Faculdade de

Ciências, estudava astronomia, as leis

de Kepler, mas não andava de noite a

ver as estrelas e a Lua.


Quando andava na Faculdade de

Letras, estudava a cantiga de amigo

“Bailemos nós já todas três, ai amigas,/

só aquestas avelaneiras frolidas”, mas

não dançava.


A minha vida estava errada. Mas

estudar foi bom.

Não quero morrer, quero brincar.

Estou contente, deixo-me estar

acordada.


Este mundo está muito mal feito. Tem

as melhores coisas. Mas as más são tão

más que pesam mais do que as boas.

Não devia haver o sofrimento. O pior

de tudo é o sofrimento e a morte dos

queridos.

 

Um bule com uma rosa de cerâmica

dentro consola um bocadinho, dá

alento. Mas para as coisas muito tristes

não há consolação, há revolta.


Adília Lopes