domingo, 31 de agosto de 2014

Erupção e irrupção

Irrupções furtivas

Há aposentos que emergem
de um fulgor ancestral. Onde se urdem,
se propagam,
como um eco no silêncio. São espaços
abissais.

Um fio apenas os concentra.
Dele pendem. Nele
se juntam. É ele que os sustém
ou precipita. São latitudes, são situações.
São arestas que aproximam
os seus volumes.
Lapsos de cálida embriaguez.
Por vezes surgem na mata brava,
nela se fundem, se espalham, recriam raízes
na sua quietude. Deixam, por vezes,
um rasto breve.


Coral Bracho (México, n.1951)- a tradução é minha.



sábado, 30 de agosto de 2014

Gregos e Índios

Os géneros gramaticais
             (IX.488)
Dos seus amores, deu à luz a filha de um gramático
       uma criança- no masculino, feminino e neutro.

Páladas, Antologia Palatina (c. 319-400) –Grécia



Vaguear na noite

Queria vaguear na noite
         contra os ventos.
         Vaguear na noite
     quando chilreia a coruja.

Queria vaguear na noite

Queria vaguear na aurora
             contra os ventos.
           Vaguear na aurora
     quando grasna a gralha.
Queria vaguear na aurora

Sioux, América do Norte


Canção

Água azul; ei-la.
Entrei nela.
Fiquei todo azul
                    
Pimas, América do Norte



segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Gregos de paixão


 Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão? 
 os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo 


 e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, que não, que ao menos me encontrasse a paixão
                                                                                                 e eu me perdesse nela,
a paixão grega.

Herberto Hélder in A Faca não corta o fogo



segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A vez de ir ao mar



quando for a minha vez de ir ao mar
devolvam-me da infância
as andorinhas
as conchas e...
as marés

os búzios, as
canas de pesca, as
tardes
e a
nudez

tragam a leveza que inaugurava a
praia e a
manhã

a mão que escondia o
sol e acenava ao
pássaro branco.

a secreta ânsia de espreitar a tarde
a expressão de repouso no olhar.


ONDJAKI, DENTRO DE MIM FAZ SUL, seguido de ACTO SANGUÍNEO (Caminho, 2010)

 

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Perpétua prospeção

Vozes de burros já chegam aos céus.



                    Ainda procuro o lugar onde as cigarras se desintegram em canto
                                 o rabo de ciclone várias vezes aflorando a nuca
                                               o que deve viver ou morrer
                                                       dentro e fora de mim...

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Mulheres subitamente importantes


Oração fúnebre por uma mulher sem importância

Deixou-nos sem que lhe empalidecesse uma bochecha
     ou lhe estremecesse um lábio
As portas não ouviram ninguém trazer a narrativa
     da sua morte
Nenhuma cortina de janela ressudou de desgosto
se levantou para seguir com os olhos o seu caixão até
     que ele desaparecesse
Lá fora raras as pessoas que se comoveram ao lembrá-la
A notícia perdeu-se nas ruelas sem que
     se espalhasse o seu eco
E refugiou-se no esquecimento de algumas covas
A lua deplorou esta infelicidade.

A noite não lhe prestou nenhuma atenção e entregou-se ao dia
Então veio a luz com os clamores da leiteira,
    o jejum,
O miado de um gato esfomeado que só tinha pele
    e osso,
As querelas dos vendedores, a amargura, a luta,
As crianças atirando pedras umas às outras de um extremo ao outro
    da rua,
As águas sujas nas valas e os ventos brincando
      sozinhos às portas dos terraços
Num esquecimento quase total.


Nazik Al-Malaika ( iraquiana, 1923-2007) - traduzi eu, do francês.
 in  Anthologie de poésie arabe contemporaine, Actes Sud, 2007 


terça-feira, 5 de agosto de 2014

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Rosa e Boavista

DIA 





                                    De dia, os gatos são leopardos


domingo, 3 de agosto de 2014

Alecrim

 NOITE

 O navegador de imagens
 o génio da leveza
 elevou-se no ar fresco da noite
 e contempla as luzes da cidade (...)

                                Manuel Paes


 








sábado, 2 de agosto de 2014

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Basta!

...caíram no soalho bombas rápidas

Ergo nos dedos ossos esmagados
e fica o pó das folhas nas retinas
mais velha faz-se a casa na planície
despenharam-se nela aviões ávidos

A pergunta da noite sobre os mortos
vem das aves caídas e da terra


e desloca-se o vento para o norte
a resposta da morte envolve a terra
devolve ao chão as folhas e os ossos


Gastão Cruz

(escreveu estes versos.Porém, acho que não os dispôs deste modo no poema).


Trabalho de Jesús Curiá