quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da
qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no
caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à
glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os
grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens
e mulheres perdem a aura
na
usura,
na
política,
no
comércio,
na
indústria,
dedos
conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos
objectos entrando e saindo
dos
dez tão poucos dedos para tantos
objectos
do mundo
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas
cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que
alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem
de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham
muito alto a música e que eu dance,
fluido,
infindável,
apanhado
por toda a luz antiga e moderna,
os
cegos, os temperados, que não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela,
a
paixão grega.
Herberto Hélder in A Faca não corta o
fogo
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