sábado, 31 de janeiro de 2015

Sunday morning


Ler

O HOMEM QUE LÊ

Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde... em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.

E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa.

R M Rilke, checo de língua alemã (4/12/1875-29/12/1926)

(tradução de Maria João Costa Pereira) 

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Shiki

Já li trezentos haiku
 junto de mim
  apenas dois diospiros

Li trezentos haiku
 sobre a mesa
    dois diospiros




                                               Crisântemos murchos
                                                 peúgas a secar na vedação

                                                     – um dia bonito


                   Shiki (1867-1902)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Haiku


               As noites dos homens de outrora
foram semelhantes à minha
           a esta noite de chuva fria


           Buson


              Grito do faisão prateado
que não pode dormir
            a lua fica gelada

          Kikaku

«If you know her»





IF YOU KNOW HER

If you know your woman, know her rhythms,
know her ways; if you paying attention
to her all these years, you will know
how she comes and goes, how she slips
away even though she is standing in
the same place, you will know that her
world is drifting softly from you, and she
may not mean it, because all it is
is she is scared to be everything, scared
to be finding herself in you every time,
scared that one day she will ask herself,
all forty-plenty years of her, where
she’s been; if you know your woman,
you will know that mostly she will
come back, but sometimes, when she
drifts like this, something can make her
slip; and then coming back is hard.
If you know your woman, you can
tell by the way she puts on heels,
and she does not sashay for you
because it is not about you—how
she will buy some leather boots
and not say a word about it,
and you only see it when she walks
in one night, and she says she’s had
them forever; you will see the way
she loses the weight and pretend
its nothing, but when she isn’t seeing you
looking, you can see how she faces the mirror
lifts her chest to catch a profile,
and how she casually looks at her
ass for signs of life.  If you know
your woman, when you are gone, she
will find things to do, like walk
alone, go see a movie, find a park,
collect her secrets and you won’t know,
because she is looking for herself.
And she won’t tell you that she wants
to hear what idle men say when she
walks by them; because what you say
is not enough.  If you know your
woman, you know when she’s going
away and you will feel the big
hole of your love, and you can’t
tell why she’s listening and humming
to tunes you did not know she heard
before, and she will laugh softly
at nothing at all. If you know your
woman, you will see how she comes
and goes, and all you can do is wait
and pray she will come back to you,
because you know that your sins
are enough for her to leave and not return.
Kwame Dawes (Ghana, 1962)


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Raízes

Para o Eduardo

Horário do fim

Morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento

Mia Couto, (Moçambique, 1955) in Raiz de Orvalho

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

«Novíssimo Prometeu»- à data...



Novíssimo Prometeu

Eu quis acender o espírito da vida,
Quis refundir meu próprio molde,
Quis conhecer a verdade dos seres, dos elementos;
Me rebelei contra Deus,
Contra o papa, os banqueiros, a escola antiga,
Contra minha família, contra meu amor,
Depois contra o trabalho,
Depois contra a preguiça,
Depois contra mim mesmo,
Contra minhas três dimensões:

Então o ditador do mundo
Mandou me prender no Pão de Açúcar:
Vêm esquadrilhas de aviões
Bicar o meu pobre fígado.
Vomito bílis em quantidade,
Contemplo lá embaixo as filhas do mar
Vestidas de maiô, cantando sambas,
Vejo madrugadas e tardes nascerem
– Pureza e simplicidade da vida! –
Mas não posso pedir perdão.

Murilo Mendes, Brasil, Poesia completa e prosa
         (escrito entre 1932-35)

domingo, 25 de janeiro de 2015

Prometeu





ÁGUIAS

As águas negras da noite as águas negras
as águias que debicam
meu coração no cimo da montanha
a pulsação do mar o oiro alquímico
a batida do vento e a laranja
que devagar amadurece algures no mundo.
Toda a terra está escrita.
Encosta o teu ouvido à página do livro
ouve o rumor do mundo a
floração secreta a música
as águas dentro da palavra
as águias.


Manuel Alegre, Senhora das Tempestades

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Sexo em películas e tela

Antonio Seguí -detalhe
Antonio Segui -detalhe










Filmes Pornográficos

Estes que não actores se alugam para filmes
da mais brutal pornografia crua
em que não representam mas só fazem
tudo o que possa imaginar-se e a sério
com a máquina espreitando bem de perto
por ângulos recônditos os gestos,
os orifícios penetrados e
quanto os penetra até que o esperma venha,
por certo são dos que prazer mais sentem
sabendo que afinal se exibem para tantos olhos.
São máquinas de sexo. Às vezes belas,
sem dúvida atraentes muitas delas,
imagens escolhidas como sonhos de
que possa ser a máquina perfeita.
Mas na verdade sentirão prazer?
E na verdade o dão no que se mostram?
Tão máquinas apenas – sem de humano
não digo só que o toque da carícia abrupta
mas mesmo uma atenção de sábio acerto
profissional de orgasmos a filmar –
que nada resta destes actos vistos
sequer desse animal mais que espontâneo
em corpos se afirmando que não falam
mas se penetram ao acaso dados.
Nada de humano ou de animal humano
flutua nestes ou na imagem deles:
até porque são vistos como nunca vistos
os actos cometidos ou espreitados,
e mesmo o esperma do ininterrupto coito
(para quem paga estar seguro de
não ser fingido nada o que foi feito)
ejaculado ou vendo-se escorrer
do corpo mais passivo numa cena
é como imitação que nada inunda
senão o olhar tornado a mesma máquina
que tão perto o foi filmar ampliado.
Horrível é tudo isto. Mas no entanto,
mecânico e brutal, sem graça nem beleza,
roubando ao imaginar quanto é sentido
porque se amor se faz mal pode ver-se,
isto possui uma nobreza estranha
e uma franqueza nua que nenhum amor
a si mesmo confessa: e contradiz
quanto mistério exista, que outro mais profundo
assim nos revela: actos de amor
são tantos actos de amor quanto são actos
de actores ocasionais para ele feitos
que todos somos desde que ele se faça.


 Jorge de Sena, 13/10/1972

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Regresso à infância




CAÑA DE AZÚCAR


 La manera como aprendí
a comer caña de azúcar en Sanosra:
empleo mis dientes
pelando la cáscara, la dura chaal
a mordiscos arranco las tiras
del blanco corazón fibroso
—chupando fuertemente con mis dientes, aprieto,
y el jugo se escurre.

En las mañanas de enero
el granjero corta verdes, tiernas cañas de azúcar
y las lleva a nuestra puerta.
Por las tardes, cuando los adultos se han dormido
nos escapamos afuera llevándonos las largas, suaves varas.
El sol nos calienta, los perros bostezan,
los dientes se endurecen
y nuestras quijadas se entumen;
por horas chupamos el russ, el jugo pegajoso
derramado en las manos.

Por eso esta noche
cuando me pides que use mis dientes
para chupar duro, muy duro,
siento que me huele tu pelo
a caña de azúcar
y me imagino que te gustaría ser

shérdi shérdi en los campos
las leves cañas se mecen
y abren un camino frente a nosotros.


Sujata Bhatt, Índia, 1956

(tradução de Mrio Bojórquez)








terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Surpresas

Paula Rego














Surpresa

Morto ficou na rua
com um punhal no peito.
Não o conhecia ninguém.
Como tremia o farol,
mãe!
Como tremia o pequeno farol da rua!

Era madrugada. Ninguém
pôde assomar-se a seus olhos
abertos ao duro ar.

Que morto ficou na rua,
que com um punhal no peito
e que não o conhecia ninguém.


Federico García Lorca, ( 5/6/1898 - 19/8/1936)

domingo, 18 de janeiro de 2015


NOITE
                                   
                                            DE




C
H
U
V
A

   ' '' ''
| '|' ' \~''|||
   \' | ''''\ /'''! 
     \''|'''|'''|''|\

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O acaso e a poesia

Shirley Ann Eales

Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo – mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas

e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais me reconforta;
o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontespício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville – um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto

e oxigénio suficientes para arder.
O livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira – e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde

insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que eu? Não sei quem és
nem onde estás agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.

 Rui Pires Cabral, Longe da aldeia, 2005

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Praias, poetas e fotografias- circulando no tempo


O tempo circular

 há uma fotografia de ruy belo
e há também aquela praia muito ténue de “não há morte
nem princípio”

ou há uma fotografia do meu pai numa
beira-mar de moçambique

sentado com um outro que nunca soube
quem era, óculos escuros – a mocidade

– esse outro

o meu pai olhando o mar para lá do
fotógrafo como se o fotógrafo

e
agora
quem vê a fotografia segurando-a
com a mão vindoura

como se não existissem
não existíssemos mas que fosse minha
também

aquela praia onde ruy belo
ainda não usava barba e cabelo à ruy belo
à

allen ginsberg (gente que já morreu
gente vindoura)
tudo gente que habitou longamente
em algum momento uma praia

uma praia
que eu sei que há e que aconteceu
também quando eu morri

quando eu também fui jovem
e poeta numa fotografia ou num reflexo

de garrafa

a minha imagem
à beira de um verão segurando
desde o peito a vida


Miguel- Manso, Quando escreve descalça-se, Trama Livraria, Lx, 2008

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

O sangue

Supremo viajante
o sangue percorre
os seus circuitos
azuis-vermelho-escuros

Obedece aos semáforos de existir

Ana Hathely, Fibrilações, Quimera Editores, 2005 

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Por afinidade

O coração
é uma cidade
por afinidade:
   Vibra no escuro

Ana Hatherly, Fibrilações, Quimera Editores

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Praias urbanas




            Nunca estive na Bahia, mas passo por lá todas as tardes.
           Amanhã vai chover. Sentirei  falta do sol da minha Itapuã.


domingo, 11 de janeiro de 2015

Folhas de linhas


falo de uma assentada
e em voz alta percorro
o perímetro do bule
a bordo de folhas de chá



subitamente leve
contento -me com o vocábulo excitante
deixando para amanhã o que posso fazer hoje

e fazendo hoje o que só amanhã poderia


Regina Guimarães, Sinto Muito(à volta do Quarteirão)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Ossos


Algo queda siempre.

Una bocanada de aire
aprisionada en la boca
al cerrar los labios
o clausurar la tumba.

Un último aliento
—irrespirado
irrespirable—
preso en su propio hedor.
 
Algo queda siempre.
.
.

… huesos
someramente hundidos en la arena
bajo el soplo de la luna huesos blancos
más que el alborada duros y pulidos
como guijarros de la orilla huesos
que fractura el mediodía
y el desierto pulveriza
en otros velos y otros soplos
que cubren y descubren
huesos …
..

Francisco Segovia , México (1958)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A onda

                                              
                                                                                      









III
Muito mais leve
do que uma pena     qualquer
de qualquer penugem de um pássaro     vulgar
é a onda a virgular-se em altura
                       ,
Voo tão perto de tocar a nuvem
momento mínimo antes do cair
ínfimo espaço de um tempo
em que a onda é ar
                                            mais do que é mar

Rita Taborda Duarte, Na estranha casa de um outro, Edições Asa