domingo, 8 de novembro de 2015

Electrónica


Na década de 70 do século passado, VN escreveu este poema semanticamente electrónico: nele a palavra ordenador figura em vez de computador, por ser polissemicamente mais rica.

 

SEMÂNTICA ELECTRÓNICA    

Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenhador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
Mas o desordeiro
Quebrou o ordenador
E eu já não dou ordens
Coordenadas
Seja a quem for.
Então resolvo tomar ordens
Menores, maiores.
E sou ordenado,
Enfim ‑ o ordenado
Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado.
‑ Mas ‑ diz-me a ordenança ‑
Você não pode ordenhar uma máquina:
Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca.
De mais a mais, você agora é padre,
E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha.
Velhaca, mesmo uma ovelha velha,
Quanto mais uma vaca!
Pois uma máquina é vicária (você é vigário?):
Vaca (em vacância) à vaca.
São ordens...
Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado,
Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa
(Para acabar a conversa
Como aprendi na Infantaria),
Ordenhado chorei meu triste fado.
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!


Vitorino Nemésio ( 1901-1978)

Quando o li, apreciei-lhe antes de tudo o ritmo; depois, o jogo não apenas com os diferentes sentidos de um neologismo cuja raiz é a palavra ordem, mas também com uma sua parónima-  ordenhar; posto isto e finalmente, a ironia refinada que dele se desprende suplantando a nomeada tristeza. 
Hoje penso que ainda não foram exploradas pelos humanos, em seu favor, todas as potencialidades desse mundo cibernético. Mas isso é um outro assunto...

Ernesto de Sousa

Sem comentários: