terça-feira, 30 de junho de 2020

«Rebentos no carvão»



Rebentos no carvão

 Agências noticiosas
 em todas as línguas do mundo
 lamentam o meu coração
 totalmente carbonizado
 em todas as línguas do mundo.
Apesar disso,
 rebentos novos
 põem a língua de fora ao brasido
 e escolhem – em oposição às agências
 noticiosas –
 a via real do sol.
Apesar disso,
os recém-nascidos
 são mais numerosos do que os mortos
 (Fraco consolo!)
E apesar disso
 a canção derrama-se
 sobre os campos de batalha:
 Ah, como é belo o rebento vermelho
 Sobre o coração totalmente carbonizado.

Samih Al-Qassim, Palestina (1939-2014)
- a tradução, do francês, foi feita por mim-


domingo, 28 de junho de 2020

Pele sobre asfalto

Despe-se 4 ou 5 vezes por ano
para poder crescer.


A cauda da cobra-
tudo o que vive por perto
silencia a voz

Ishibashi Hideno, Japão (1909-1947)
(versão portuguesa de Luísa Freire)

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Boca



A minha boca

 A minha boca
 cheia de palavras geladas
 é uma prisão
 de tempestades retidas
 a minha boca
 é canção de Istar
 e contos de Xerazade
 a minha boca
 é o gemido silencioso de uma queixa
 a minha boca é uma fonte vertendo prazer
 no cântico
 do coração
 e da carne

Maram Al-Masri, Síria 1962
- a tradução, do francês, é mlnha-



quarta-feira, 17 de junho de 2020

Pinças esfaimadas


https://www.youtube.com/watch?v=Jfm4cMPhTq0&feature=emb_rel_end



                   O tempo

Quimera sentida pela pele, palpável sob os ossos,
 Que amarelece, torna branco e às vezes escurece,
 É o tempo. O mesmo que atravessa
 As árvores e os montes
 As águas, o vento
 Os sonhos e as palavras,
 Deixando atrás de si os vestígios da sua passagem
Como uma amante que quer denunciar o amante,
 Os papéis frágeis fotografias e cartas,
 As rugas, o reumatismo e as memórias devoradas
 Comidas pelo escorpião das suas pinças esfaimadas.
    Maram Al-Masri, Síria (1962)
       - traduzido do francês por mim-


terça-feira, 16 de junho de 2020

<«Another new world»



Outro novo mundo


Os “faróis” da época perguntavam-se entre si o que faria eu a seguir: depois de tudo o que tinha encontrado nas minhas viagens à volta do mundo, haveria mais alguma coisa para descobrir?

 "Cavalheiros", disse eu, "Estudei os mapas" "E se o que estou a pensar estiver certo" "Há outro novo mundo no topo do mundo", "para quem for capaz de atravessar o gelo"

 olhei em volta da sala, tal como fizera outrora e vi que queriam acreditar Então disse “ A minha coragem e o meu Deus são tudo o que tenho " Depois fiz uma pausa", e a Annabelle Lee."

 Oh!, a Annabelle Lee, vi os olhos deles a brilhar A nau mais bela do mar Minha Nina, Minha Pinta, Minha Santa Maria Minha linda Annabelle Lee.

Naquela primavera zarpámos enquanto a multidão acenava da costa e a bordo a tripulação acenava com os chapéus, mas nunca tive família, só a Annabelle Lee. Por isso não tinha motivo para olhar para trás,
 com precisão rumei a norte e estudei os mapas e, em direção ao escuro, à deriva vagueei para o sono E sonhei com o ótimo porto profundo que encontraria depois do gelo para a minha Annabelle Lee

 Depois disso ficou mais frio o mundo ficou mais calmo nunca foi totalmente dia ou totalmente noite e o mar transformou a cor do céu transformou a cor do mar transformou a cor do gelo

 Até que finalmente tudo à nossa volta era vastidão. Um vasto e vidrado deserto de arsénico branco e as ondas que outrora nos elevaram em vez disso crivaram de bancos de neve os costados da Annabelle.
 A tripulação no início chegou-se mais perto para se aquecer; porém cada manhã traria um novo conjunto de esteiras na neve que levavam ao limite do mundo até eu ser o único que restava

 Depois disso ficou nublado, parece que me deitei durante dias, talvez durante meses, mas a Annabelle conteve-me os dois felizes só por recordar tudo o que tínhamos feito,
     falámos dos outros novos mundos que tínhamos descoberto até que me entregou o seu corpo.       E durante o tempo em que lhe cortava a vela principal para madeira, contei-lhe tudo o que ainda tínhamos para ver;
 então enquanto a geada transformava as suas amarras em nove caudas e o vento lhe chicoteava os flancos no frio queimei-a para me manter vivo todas as noites no amoroso amplexo do seu porão,

E não chamarei salvamento ao que me trouxe de volta ao velho mundo para beber e declinar. E para fingir que a procura de outro novo mundo valera bem a queima do meu.

 Mas às vezes à noite, nos meus sonhos, ouço o canto de um pássaro tropical desconhecido e sorrio durante o sono pensando que a Annabelle Lee tinha avançado para um outro novo mundo.

Sim, às vezes, à noite em sonhos, vem o canto nunca ouvido de um pássaro tropical E eu sorrio durante o sono pensando que a Annabel Lee alcançara um outro novo mundo.

Texto do cantautor Josh Ritter,(EUA)- traduzido por mim.

sábado, 13 de junho de 2020

Punch Brothers + Josh Ritter's+ Allan Poe e F. Pessoa



ANNABEL LEE 
(de Edgar Allan Poe)


Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.


Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor --
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.


E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.


E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.


Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.


Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.


Tradução de Fernando Pessoa



sexta-feira, 12 de junho de 2020

Lem Lopes


Lem Lopes

Eu já não sinto de perto o que vejo
Nem já olho no longe o que desejo
Mas escrevo na poesia com que me pinto
O pouco que me resta- iludir o muito.

Badiu Branku, Portugal/ Cabo Verde
         (1948/ 1983- ?)


quinta-feira, 11 de junho de 2020

Redonda



 Argumentos da antiguidade

copérnico pontapeou
 a laranja que lhe aparecera
 no caminho. mesmo assim mostrou
 grande dificuldade em defender
 a ideia de que a terra rodava.
 disse: a terra é azul como uma laranja.
 os juízes (de galileu) riram-se da parvoíce.
 séculos depois, um poeta francês
 chega a idêntica conclusão.
 é redonda a crise terrestre.

     Francisco Duarte Mangas, 1960


quarta-feira, 10 de junho de 2020

Camões desconhecido



CANTIGA
A UMA DAMA DOENTE
Mote
Deu, Senhora, por sentença
Amor que fôsseis doente
para fazerdes à gente
doce e formosa a doença…

Voltas
 1
Não sabendo Amor curar,
foi a doença fazer
formosa para se ver,
doce para se passar.
Então, vendo a diferença
que há, de vós a toda a gente,
mandou que fôsseis doente,
para glória da doença
 2

E digo-vos, de verdade,
que a saúde anda invejosa,
por ver estar tão formosa,
em vós, essa enfermidade.
Não façais logo detença,
Senhora, em estar doente,
porque adoecerá a gente,
com desejos da doença.

 3
Que eu, por ter, formosa Dama,
a doença que em vós vejo,
vos confesso que desejo
de cair convosco em cama.
Se consentis que me vença
deste mal, não houve gente
da saúde tão contente
como eu serei da doença.


  Luís de Camões



terça-feira, 9 de junho de 2020

Luís, sozinho no seu largo


  Ao desconcerto do mundo


Os bons vi sempre passar
                                No mundo graves tormentos;

E, para mais

                      me espantar,
Os maus vi sempre nadar
                                  Em mar de contentamentos.


Cuidando alcançar assim
O bem

                tão mal ordenado,
Fui mau, 

              mas fui castigado:
                  (...)

         Luís de Camões 




              

segunda-feira, 8 de junho de 2020

O degredo



Toda a santa noite, um relógio de cuco, o sino
de uma igreja, um carro na avenida, a insónia
a tomar o peso ao desalento, e a ternura em fuga
por um campo deserto. Toda a santa noite,
a mesma correria, abraçando-me ao ar como
se fosse um corpo, rasurando as imagens, em saldo
e já alheias, de um passado um pouco menos
precipício. Uma meia de leite, uma meia no pé,
meia lua, quase meia maratona, sem sair do quarto,
sem sair do enredo a que me acho preso como
o fogo à chama. Alça a madrugada o seu can-can
de vento sobre a tabuada livre das crianças,
e todo o meu medo se reconstrói em tempo, tempo
que percorre, nuvem de leite azedo, a vida de quantos
têm cinco dedos em cada mão pousada sobre o muro
do cerco. Depois, tudo pára (para tomar chá? ou será
que a canseira desafinou os dedos?) e, súbito, o degredo
é a única forma de esquecermos os barcos
em que, outrora, sonhámos alcançar Port Said
no embalo de um verso de desespero ao largo.

              Miguel Martins, 1969



domingo, 7 de junho de 2020

2 Haiku + Nô


 1. Em lixo comum 
   começam a transformar-se
 as flores que tombaram.

2. Colocar a máscara 
    e pôr os óculos de sol - 
orelhas na Primavera!

      Tsuji Momoko, Japão (1945) 
(tradução de Luísa Freire) 

sábado, 6 de junho de 2020

Viagem a Ítaca


Ítaca

se quiser empreender viagem a Ítaca
 ligue antes
 porque parece que tudo em Ítaca
está lotado
 os bares os restaurantes
 os hotéis baratos
os hotéis caros
 já não se pode viajar sem reservas
 ao mar jônico
 e mesmo a viagem
 de dez horas parece dez anos
 stop-overs no egito?
 nem pensar
 e os free-shops estão cheios
 de cheiros que se podem comprar
 com cartão de crédito.
 toda a vida você quis
 visitar a Grécia
 era um sonho de infância
 concebido na adultez
 itália, frança: adultério
 (coisa de adultos?
 não escuto resposta)
bem, se quiser vá a ítaca
 peça que um primo
 lhe empreste euros e vá a Ítaca
 é mais barato ir à ilha de comandatuba
 mas dizem que o azul do mar
 não é igual.
 aproveite para mandar e-mails
 dos cybercafés locais
 quem manda postais?
 mande fotos digitais.
 torre no sol
 leve Hipoglós
 em ítaca comprenderá
 para que serve a hipoglós.

Angelica Freitas, Brasil (1973)



quinta-feira, 4 de junho de 2020

Isto não é um poema!



“Meu, a minha cara... 
Eu não fiz nada de grave
por favor
por favor
por favor,  não consigo respirar
por favor, meu
por favor, alguém
por favor, meu
Eu não consigo respirar
Eu não consigo respirar
por favor
(inaudível)
meu, eu não consigo respirar, a minha cara
sai de cima
Eu não consigo respirar
por favor (inaudível)
Eu não consigo respirar, caraças
Eu vou...
Eu não consigo  mexer-me

      Mãe, mãe
Eu não consigo
o meu joelho
o meu saco
eu vou morrer
eu vou morrer
  sinto falta de ar 
o meu estômago dói
o meu pescoço dói
dói-me tudo 
alguém me dê água ou algo
por favor
por favor
eu não consigo respirar, agente
não me mate 
meu, eles vão matar-me
por favor
Eu não consigo respirar
Eu não consigo respirar
eles vão matar-me
eles vão matar-me
Eu não consigo respirar
Eu não consigo respirar
por favor, senhor
por favor
por favor
por favor, eu não consigo respirar"

In memoriam George Floyd, Eric Garner e de muitos outros. .


quarta-feira, 3 de junho de 2020

A leste no oeste



  A oeste de um continente entorpecido
                          por vezes ainda mais
  a oeste de
  um país pobre mas antigo de fronteiras
         ou no meio do mar
                                ilhas por desbravar      
    a oeste do oeste de geográficas bandeiras
    numa perspetiva dada
    à custa de muitas batalhas
                                  almíscar sândalo madeiras
    afirmo           determinada
                                     a leste estive
                        estava  -estou
  Como aí               lá e aqui             
  há gato        de garra afiada
           -na escrita pelo menos
 e galos de crista encarnada
 acidentais    menos ágeis
 esquecidos das estrelas
 que exibem frágeis lampejos
  nas unhas nos pés e
         nos dedos





segunda-feira, 1 de junho de 2020

Crianças



"(...) o que são afinal os Direitos da Criança?

O que prometeram os Estados e o que falta cumprir?

Muitos passos importantes foram dados, mas calamidades como a guerra, a fome, a falta de acesso à saúde e à educação e a mão-de-obra infantil constituem ainda um enorme desafio global.

A luta pelos Direitos da Criança é, assim, um caminho que temos de continuar a trilhar, numa perspectiva integrada, enfrentando problemas cavados por desigualdades sociais, económicas e culturais.

Além disso, directa ou indirectamente ligados, há outros desafios que se impõem actualmente e que passam, certamente, por um maior respeito e mais complexo entendimento sobre estas duas etapas do desenvolvimento humano: a infância e a adolescência.

O debate urge e requer especial acuidade no caso de Crianças em situações de particular vulnerabilidade. As Crianças que vivem em contextos de violência doméstica estão, pois, no centro das nossas principais preocupações. (...)".

 Excertos do projecto IJCC - Improving Justice in Child Contact - em português “Melhor justiça para as crianças em situações de violência doméstica.
         > propostas de reflexão/questões que surgem
                                                                                no site UMAR/ IJCC - que é lançado hoje.