segunda-feira, 8 de junho de 2020

O degredo



Toda a santa noite, um relógio de cuco, o sino
de uma igreja, um carro na avenida, a insónia
a tomar o peso ao desalento, e a ternura em fuga
por um campo deserto. Toda a santa noite,
a mesma correria, abraçando-me ao ar como
se fosse um corpo, rasurando as imagens, em saldo
e já alheias, de um passado um pouco menos
precipício. Uma meia de leite, uma meia no pé,
meia lua, quase meia maratona, sem sair do quarto,
sem sair do enredo a que me acho preso como
o fogo à chama. Alça a madrugada o seu can-can
de vento sobre a tabuada livre das crianças,
e todo o meu medo se reconstrói em tempo, tempo
que percorre, nuvem de leite azedo, a vida de quantos
têm cinco dedos em cada mão pousada sobre o muro
do cerco. Depois, tudo pára (para tomar chá? ou será
que a canseira desafinou os dedos?) e, súbito, o degredo
é a única forma de esquecermos os barcos
em que, outrora, sonhámos alcançar Port Said
no embalo de um verso de desespero ao largo.

              Miguel Martins, 1969



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