quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A Sombra e Branca brincalhona


A Sombra
É pequena de mais para ser um bêbado dormindo.
É uma sombra na rua que não é costume estar naquele lugar.
Embora saiba que nesta rua as sombras são autónomas.
Desço e dirijo-me para lá agarrando-me às paredes. É a cabeça de um cavalo de olhos abertos.

A Solidão
A solidão movendo o espaço como a vela do moinho, moendo o tempo como as suas mós, mastigando a vida como o moleiro o palito entre os dentes: era branca: como a farinha como a parte visível dos seios da neta do moleiro tomando banho no litoral, ou ainda branca como a erótica espuma que a lambia.
Montava serenamente um burro, dirigia sem palpitações o seu olhar sobre o que havia: que era diverso e eterno: e para não ser denunciada vestia-se como noiva:
   a solidão brincando de enganar-se a si própria.
 
Deodato Santos, O Eco, 1989

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O desejo à sombra

«…Os que reprimem o desejo fazem-no porque o deles é suficientemente fraco para ser reprimido; e o elemento repressivo ou Razão usurpa então o lugar do desejo e rege quem não tem força de vontade e que, ao ser reprimido, se torna gradualmente passivo até não ser mais que a sombra do desejo …» in  A união do Céu e do Inferno, W. Blake.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Nascituros


                                                  




A água mole
 a pedra dura

a água dura
a pedra mole

E
um anti- Menino Jesus
que rejeita
as prendas
todas
(atira o ouro
o incenso
a mirra
à cabeça
à cara
à coroa
dos Reis Magos)

Pelos ares
voam cordeiros
e potes de mel


Adília Lopes, César a César, 2003

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Revisitando Bashô



Nem chás nem sakê  -
Branco da lua o falador
Fuma sozinho

  «Oh! Anda ver
                                                     Uma bola de neve                                                         a arder»

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Árvores de Inverno


Árvores do parque amarelas
ou carecas no jardim
na praça de bolas e prata
plástico luzes sem fim
e gente que a pressa mata



em frente azulejos rosa
licores e água ardente
no alto azul já turquesa
no solo ratos e rolhas


À janela
do marido da marquesa
surge o rosto bem de gelo
-que é só dela

E corações em mil folhas
 -mui avisado desvelo-
são colados na esquina
com dizeres em inglês
na terra do português
que é uma mina.




Árvores do parque amarelas
árvores de sol

sois tão belas.


segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Mundo cão


HISTÓRIA DE CÃO

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada


          Mário Cesariny (1923-2006)

                                         O CÃO QUE ME TINHA

                                Eu tive um cão ou era ele que
                                me tinha e me deixava à solta
                                guiada sem saber que ia.
                                Tomava as minhas feridas,
                                a tristeza que eu pudesse ter
                                 e sofria dela como eu nem sofria.
                                 Trocava de mal trocando-lhe as voltas.
                                  Punha a coleira ao pescoço
                                   e levava-me a passear
                                   como se eu fosse o dono.
                                   E à noite dormia no chão
                                   ou então fingia. Eu acordava
                                   com um servo aos pés da cama,
                                   armava-me em amo
                                   e era ele que me tinha.
                                    Exímio no silêncio
                                   e no uso das armas
                                   com que me defendia
                                   de todos e também de mim:
                                    a linha veloz do pêlo luzidio,
                                   o frémito da língua,
                                    o focinho em arco para a escuta.
                                    Era um cão que me tinha
                                     e uma tarde de verão
                                     atirei-lhe um osso gostoso
                                      antes de o deixar no canil.

                                    Rosa Alice Branco

domingo, 21 de dezembro de 2014

Vagões





¿Cuántos vagones?


¿Cuántos vagones tuve que recorrer para encontrarme,
para ver mi sombra en el sol,
para fijar mis ojos en los cristales dispersos?

¿Cuántos ruidos tuve que escuchar para reconocer mi voz,
para sentirme parte del mundo,
para dejarme llevar por los sonidos de mi país?

¿Cuántas lluvias tuve que infligir,
en medio del campo,
en algún desierto?

¿Cuántos kilómetros viajé,
cuántos recorrí,
en dónde quedó mi imagen,
en qué estación me iban a recoger,
por qué sigo buscando mi muerte,
por qué Dios no viaja en los trenes?


Miguel Córdova Colomé, México (1990)



sábado, 20 de dezembro de 2014

Baixinho



FALAR

A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
falta ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.

Ferreira Gullar, Brasil, 1930

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O cutelo da lua


Sargaceira

A rosa de fogo
já desapareceu no mar.
Com a graveta,
afadigadamente,
a mulher arranca às ondas o sargaço.
Escrava,
sem queixumes,
como se não colhesse
pão salino e amargo,
a dobrar-lhe a espinha,
a açoitar-lhe as pernas,
a derrear-lhe os braços,
mas raízes-flor dos abismos,
resigna-se ao fardo dos dias.

O cutelo da lua
ceifa-os, inexorável.


Luísa Dacosta; A Maresia e o Sargaço dos Dias

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Canção


Canción de pescadoras

Niñita de pescadores 
que con viento y olas puedes, 
duerme pintada de conchas, 
garabateada de redes. 

Duerme encima de la duna 
que te alza y que te crece, 
oyendo la mar-nodriza 
que a más loca mejor mece. 

La red me llena la falda 
y no me deja tenerte, 
porque si rompo los nudos 
será que rompo tu suerte... 

Duérmete mejor que lo hacen 
las que en la cuna se mecen, 
la boca llena de sal 
y el sueño lleno de peces. 

Dos peces en las rodillas,
uno plateado en la frente,
y en el pecho, bate y bate,
otro pez incandescente...


Gabriela Mistral,Chile (1889-1957)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

«Normalistas»

 NORMALISTAS

                 A mis hermanos mexicanos


En todos los relojes resuenan una a una
cuarenta y tres campanas que hacen de la jornada
un desfile de interminables horas.

Ya nadie reza en las iglesias.

Hoy los crucificados
ocultan con las manos su mirada
en un gesto de rabia y de vergüenza.

Los creyentes no les ofrecen velas
a los que fueron santos predilectos
y las llamas se elevan en mitad de la noche
buscando iluminar una certeza,
tratando de agrietar
un silencio más cómplice
que la peor mentira.

Quien carece de sueños se queda sin futuro.

Quien niega a sus maestros un pedazo de tiza
niega a sus propios hijos
la posibilidad de una pizarra
donde escribir “mañana”.


Javier Bozalongo, Espanha (1961)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Névoa insone


(Tu que habitas a montanha suspensa)

tu que habitas a montanha suspensa
e soltas os cavalos que trazem a alvorada
inclina a fronte louca crivada de planetas
transmuda a água em fogo
oferece-nos o lume
derrama a névoa espessa

                                                      e dá-me o dom do sono


                  Madalena Férin, in Um Escorpião Coroado de Açucenas (2000)



domingo, 14 de dezembro de 2014

Soneto que veio com o frio


Se me tivesses visto hoje à rasquinha
neste domingo de frios estilhaços
quando voltava da faina e mantinha
a rede enrolada nos meus braços…

quando recordo esse peso que tinha
o peixe…caído nos regaços
suas escamas… a pele em pedaços
seus olhos saídos …branca gelatina.

Se me tivesses encontrado quando
cantando ao vento a faca amolava…
-verde era o riso de peixe e sargaços-

ou no fio da rede os braços enrolava…
quando…boca-cravo fugia e parava
à seda do sol reparando embaraços.

sábado, 13 de dezembro de 2014

O dragoeiro

 O DRAGOEIRO


Vi o dragoeiro
num alfarrabista
era um livro velho
com fotografias
mas no preto e branco
o tempo pusera
nódoas azuladas
retrato escurecera
cor de marfim
indo-português.
Resto de nobreza
mil e quatrocentos
vi-o nos Açores
junto à Madalena
torto ressalgado
quase japonês
maresia cozendo
as lenhas do veio
tronco afligido
de onde retiravam
escudelas de rei
o sangue de drago
na tinta dos fatos
a cor das mezinhas
tão triste abandono
heráldica rota
serôdias magias
alguém inda compra
nesta vil Europa
sangue de dragão?
Por isso te digo
não deixes roubar
mais seiva nenhuma
agora só serves
nas mercearias
pacotes tão sujos
que dão às galinhas.


Fátima Maldonado,
Lava de espera, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2014

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Transfiguração pela chuva



Depois de um aguaceiro

Porque vim até à cerca durante a noite,
os cavalos chegam também do seu antigo estábulo.
Deixam-me acariciar as suas caras compridas,
e, à luz da lua que agora desvanece, noto

como eles, um Morgan e um Quarter,
sulcadas as garupas por gotas de chuva
que escorrem, se tornaram Appaloosas,
os ancestrais cavalos deste lugar.

Talvez porque é noite, estão nervosos,
ou talvez porque também pressintam
aquilo em que se tornaram,
parecem estar à espera que eu diga qualquer coisa

a um qualquer espírito antigo que por aqui permaneça,
que os possa acordar deste estranho sonho
onde há cercas e estábulos e um homem que
não sabe uma única palavra que eles possam perceber.                                                                                                  

 Robert Wrigley, EUA (1951) 
(traduzido por mim e revisto por 1 amiga)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

por uns breves instantes...



I think I’ll lie down just here for a while,
                              the sun on my cheek,
The wind like grass stems across my face,
And listen to what the world says,
              the luminous, transubstantiated world,
That holds me like nothing in its look.

Charles Wright, excerto de Buffalo Yoga Coda I


'The world is a language we never quite understand.'

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Cidade(4)Surreal



Projecto de Sucessão

          Para o Mário Henrique
Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos

Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
pôr-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina
deixar fumar um cigarro só até meio
Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias.



António Maria Lisboa
Poesia
Assírio & Alvim


terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Cidade 3

Fotografia tirada pela Undine



Hora de Ponta

Apanhar um lugar a esta hora é uma sorte, poder olhar 
pela janela e fingir que tenho imunidade diplomática, 
que estou de lá do vidro com o hálito das folhas, o sabor 
a hortelã e um ar fresco interrompido pela velha senhora 
a quem cedo o assento e um sorriso enquanto me agradece 
de nada, de ir agora em pé empurrada, de cá do vidro 
a apanhar uma overdose de realidade com o bafo quente 
do homem gordo na minha orelha, com a mão livre 
apertada contra o peito, contra o visco da hora apinhada 
na minha pele pública, na minha pele de todos. 
No banco em frente uma mulher afaga a neta com o sorriso 
doce e cansado, os olhos brilhantes, a candura intacta 
toma-me toda como se eu fosse um anjo 
descendo à terra com um corpo real para que a minha pele 
receba a dádiva da tua, aceite os cheiros de um dia de trabalho, 
o calor excessivo, a proximidade insustentável e leia no teu rosto 
cada mandamento nos solavancos que nos atiram uns para 
os outros. No teu rosto à hora de ponta aprendo a compaixão 
até sair na próxima paragem com um suspiro de alívio. 

Rosa Alice Branco, in 'Da Alma e Dos Espíritos dos Animais




segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Lugar precisa-se!



Ir até ao extremo é ficar sem lugar,
porque o extremo não é um lugar,
para além não existe espaço
e quem quer que tenha ido até ao extremo
já não pode recuar.
Ir até ao extremo consiste precisamente
em descobrir a impossibilidade do regresso.
Ou talvez simplesmente
a impossibilidade.
E a impossibilidade não necessita de lugar.

Roberto Juarroz, Argentina

(tradução de Egito Gonçalves)


domingo, 7 de dezembro de 2014

Quem viu barcos

UM  FADO

Quem viu barcos
ir ao fundo
tem nos olhos a certeza
aposta firme na boca
rude descrença na reza

Quem viu barcos trazer escravos
munições e artifícios
figueira brava na costa
açoite preso no riso

Quem viu barcos
magoá-lo,
ferros, lavas e palmeiras
descrê santos e novenas,
nega laços, destrói cercos,
toma ventos por lareiras.


          Fátima Maldonado, Cadeias de transmissão

sábado, 6 de dezembro de 2014

Um barco que chega

                 Há sempre um barco

A parede da ilha está na rocha
a porta da ilha está no porto
 a parede da fome está no estômago
 a porta da fome está em nós

 ao porto a (em) nós
 existe uma certeza.


 há sempre um barco que chega


Ivone Chinita (1949-1983), Digo Fome 



quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Restauradora


RESTAURADORA
  
A morte é limpa.
Cruel mas limpa.

Com seus aventais de linho
— fâmula — esfrega as vidraças.

Tem punhos ágeis e esponjas.
Abre as janelas, o ar precipita-se
inaugural para dentro das salas.
Havia impressões digitais nos móveis,
grãos de poeira no interstício das fechaduras.

Porém tudo voltou a ser como antes da carne
e sua desordem.


Henriqueta Lisboa, Brasil (1901-1985)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Na pele do outro





Este não é o teu corpo!


No ermo do monte florido maria sua sangue, antevendo o breu onde aquele que furtivamente a beijou se afundará, apagado e para sempre descrente.

E, sem um som, logo assentiu: a cruz será minha e tua.

Maria sabe-o: na mente atormentada do amado, resgatar o homem da excedentária materialidade do mundo é um sonho em declínio. Trinta exemplares bastarão para lhe retirarem a vida.

Em silêncio, questiona-se ainda: tão pesado e quão estreito esse madeiro!

«Noli me tangere…» , ouve dentro de si., ao rasgar as vestes do sentir a vocábulos orlado.

Sacudindo o sangue que lhe escorre da pele, de braços bem abertos, sobe ao gélido céu onde as boas mulheres e a santa solidão aguardam pacientemente que chegue e sem 1chaga sequer…