terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Cidade 3

Fotografia tirada pela Undine



Hora de Ponta

Apanhar um lugar a esta hora é uma sorte, poder olhar 
pela janela e fingir que tenho imunidade diplomática, 
que estou de lá do vidro com o hálito das folhas, o sabor 
a hortelã e um ar fresco interrompido pela velha senhora 
a quem cedo o assento e um sorriso enquanto me agradece 
de nada, de ir agora em pé empurrada, de cá do vidro 
a apanhar uma overdose de realidade com o bafo quente 
do homem gordo na minha orelha, com a mão livre 
apertada contra o peito, contra o visco da hora apinhada 
na minha pele pública, na minha pele de todos. 
No banco em frente uma mulher afaga a neta com o sorriso 
doce e cansado, os olhos brilhantes, a candura intacta 
toma-me toda como se eu fosse um anjo 
descendo à terra com um corpo real para que a minha pele 
receba a dádiva da tua, aceite os cheiros de um dia de trabalho, 
o calor excessivo, a proximidade insustentável e leia no teu rosto 
cada mandamento nos solavancos que nos atiram uns para 
os outros. No teu rosto à hora de ponta aprendo a compaixão 
até sair na próxima paragem com um suspiro de alívio. 

Rosa Alice Branco, in 'Da Alma e Dos Espíritos dos Animais




Sem comentários: