terça-feira, 31 de março de 2015

Exercício


Autoportrait (à la manière de Roland Barthes)

J’AIME:
les miracles les couleurs
              les vers luisants;
 le sang les funambules les voiliers;
louvoyer;
 les gaves les gants le ciné
 la mousse et la marjolaine
                     quando il pleut;
 les gags les versets
            les coqs- à-l’âne les trochées,
 les patois les langages pourparlers
 l’inoui; l’autre; les trois-deux;
 ne rien faire
                   deux par deux;
rire le dernier
            rire à gorge déployée;
 chanter danser seule
                   me deplacer:
 le corps qui réclame
 les coeurs affamés.

JE N’AIME PAS:
 les loulous en jupe
 leurs ixodes;
 le loup-garou poilu
 les boudins et les bigots;
 les garde-à-vous
 les sales coups,
  les interlunes;
 oublier
 ne pas aimer,
 l’hiver;
 les bruits de toute sorte
 l’alzheimer;
 les voleurs qui forcent les portes,
 la Mer Morte...
 mais
  je n’aime surtout pas 

                        être de bois.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Kipling


VIVER É ARRISCAR-SE

Rir é arriscar-se
a parecer doido...
Chorar é arriscar-se
a parecer sentimental.
Estender a mão é arriscar-se
a se comprometer.
Mostrar os seus sentimentos
é arriscar-se a se expor.
Dar a conhecer as suas idéias, os seus sonhos, é arriscar-se a ser rejeitado.
Amar é arriscar-se a não ser retribuído no amor.
Viver é arriscar-se a morrer.
Esperar é arriscar-se a se desesperar.
Tentar é arriscar-se a falhar...
Mas devemos nos arriscar!
O maior perigo na vida está
em não arriscar.

Aquele que não arrisca nada...
Não faz nada...
Não tem nada.


Rudyard Kipling, Índia (1865-1936)

domingo, 29 de março de 2015

Partida de cartas: as «regras do jogo»


regras do jogo
há que respeitar as regras do jogo
reconhecer os naipes e a aparência das figuras
saber contar os pontos de cada cicatriz
enganar o estômago com a palha
há que identificar o toque fúnebre dos sinos
à praça! à praça!
sorrir mercê do alarme falso
que não soa ainda nossa a morte
há que escolher bem o parceiro
combinar sinais para a euforia da batalha
para o assomo do desespero
ser discreto na estratégia de subsistência
há que aprender a encaixar a derrota
como vinho rasca que arranha-céus da boca
aceitá-la de um trago, beber fogo
deus nos livra, mas só depois dos trinta
e se acontece juntarmos sessenta e tantos
simulacro episódico de vitórias
ser magnânimo com os adversários, afinal
o garrafão verte para os dois lados
há que prever o sítio exacto dos cotovelos
nesta coroação breve da loucura
a destempo a noite levar-nos-á todos os trunfos
restará a mesa, antecâmara de vala-comum
há que saber, sobretudo, jogar a dinheiro
o dinheiro serve apenas a imoralidade dos ases
quando vierem à pensão sueca recolher-nos as vazas
a nossa mão será sempre fraca
impassível, como uma granada, a vida
baralha e torna a dar
[paus]
velhos na praça batem            
velhas cartas no coração
a que já ninguém escreve
[ouros]
no reino dos computadores
reina o solitário, no reino
dos solitários reina a ruína
[copas]
trovejou, esteve o mundo
para acabar, mas a fronde
das árvores é ás de trunfo
[espadas]
só tens de ir a jogo, assistir
colher uma a uma as lâminas
estancar o medo qual faquir


Renato F Cardoso, catálogo da exposição SuecaPortugal

sábado, 28 de março de 2015

Sons - coisas preciosas


Les machines à sons

Ça ne vous coûtera pas grand chose.
 Il vous suffit d’(é)miser un son.
 Plusieurs, si vous êtes joueur.
 La machine engrange, engrange et ne recrache aux
 veinards le sublime agencement que lorsqu’elle a eu suf
fisamment de matière pour cela.
 Alors appliquez-vous à lui fournir vos sons les plus
 beaux.

Le jackpot est éphemère, comme le sont ici toutes
 choses précieuses.


Olivier Mellano, (França, 1971), La funghimiracolette


sexta-feira, 27 de março de 2015

Barcos


Vinlandia

Mañana, cuando ven las primeras luces,
estos barcos que ves flotar perpendicularmente
del cielo habrán zarpado
lejos, hacia la tierra de los osos. Dentro, los hombres
que ahora preparan sus viajes
estarán remando (sudor en el pecho) y habrán
de entretenerse contando las sagas
que contaron sus ancestros. Algunos no resistirán
el largo viaje sin descanso. Otros perecerán en guerras.
Otros clavarán sus espadas en la historia
y sus nombres serán recordados por nuevos poetas.
Aún nada de esto pasa
y los barcos,
en su lenguaje de contracciones, discuten
rumores de maravillas que a todos esperan
en el sur.


Sergio Eduardo Cruz Flores, México, 1994

quinta-feira, 26 de março de 2015

Variações sobre o tema



A FANTASY
.
I’ll tell you something: every day
people are dying. And that’s just the beginning.
Every day, in funeral homes, new widows are born, 
new orphans. They sit with their hands folded, 
trying to decide about this new life. 
Then they’re in the cemetery, some of them
for the first time. They’re frightened of crying, 
sometimes of not crying. Someone leans over, 
tells them what to do next, which might mean
saying a few words, sometimes
throwing dirt in the open grave.
And after that, everyone goes back to the house, 
which is suddenly full of visitors.
The widow sits on the couch, very stately, 
so people line up to approach her, 
sometimes take her hand, sometimes embrace her.
She finds something to say to everybody, 
thanks them, thanks them for coming. 
In her heart, she wants them to go away.
She wants to be back in the cemetery, 
back in the sickroom, the hospital. She knows
it isn’t possible. But it’s her only hope, 
the wish to move backward. And just a little, 
not so far as the marriage, the first kiss. 

Louise Gluck , (EUA, 1943) ,  Ararat 

« A cicatriz do ar»


        Como quem sorve a primeira brisa da terra, ainda intactas
 as areias sobrevoadas pelas aves, começo a percorrer os Livros,
        a decifrar as mãos mais nuas do que quando nasci, a orla
 da escrita e do silêncio, na aridez quiromântica;

        O olhar da Serpente dardeja nas margens, como a transpi
 ração ácida das mulheres corrói os tecidos, empesta o ar,
        e entoo na desolação da manhã uma canção antiga e nua,
 cantam-se os territórios onde alastrou a guerra e o sangue,
a vergonha e o medo;

Como quem serve um servo, a arrogância da servidão e da fome,
 começo a levantar retábulos de silvas nas margens da
 página,
         as estremas da intimidade pública, palavra a palavra nos
lugares da disputa e da usura,
        a sofreguidão demencial do ar, os sobressaltos;

Como quem levanta retábulos de palavras, canção a canção,
 para que as silvas lhe bordem a pronúncia e as tamareiras se
ericem de açúcar solar e resina,
      para que as bocas se atafulhem de terra junto ao mar, na

partilha da arrogância;


       Oh amazonas, oh suicidas, oh escravos do olhar e da fome,
 oh mendigos do ar e da luz, quem vos trouxe pela mão;
      quem vos conduziu o ódio e a destreza; quem vos armou a
voz e os gestos;
       quem vos abandonou na margem da solidão e da Casa?



       Jorge Fallorca (1949-2014),  A cicatriz do ar, Algures 2009

quarta-feira, 25 de março de 2015

Desentendimento


do mundo que malmolha ou desolha não me defendo,
 nem de mim mesmo, à força
 de morrer de mim na minha própria língua,
 porque eu, o mundo e a língua
 somos um só
  desentendimento

Herberto Helder, A faca não corta o fogo

terça-feira, 24 de março de 2015

«fogo movido pelo ar dentro»


  no mundo há poucos fenómenos do fogo,
  ar há pouco,
  mas quem não queria criar uma língua dentro da própria língua? 
eu sim queria,
 o tempo doendo, a mente doendo, a mão doendo,
 o modo esplendor do verbo,
 dentro, fundo, lento, essa língua,
 errada, soprada, atenta,
 mas agora já nada me embebeda,
 já não sinto nos dedos a pulsação da caneta,
 a idade tornou-me louco,
 sou múltiplo,
 os grandes lençóis de ar sacudidos pelo fogo,
 noutro tempo eu cobria-me com todo o ar desdobrado,
 havia tanto fogo movido pelo ar dentro,
 agora não tenho nada defronte,
 não sinto o ritmo,
 estou separado, inexpugnável, incógnito, pouco,
  ninguém me toca,
  não toco.

  Herberto Helder , A faca não corta o fogo 



   Haiku

  Ardendo de amor
 as cigarras cantam;
  mais belos porém 
  são os pirilampos
  cujo mudo amor

 lhes queima os corpos.

(                       (versão de Herberto Helder)









segunda-feira, 23 de março de 2015

A palhota




Espanta não ver nada
que se coma e caçarolas
As aranhas debandaram
não há moscas
até o humor secou
nas espinhas largadas
Vive-se como?
Donde a modeladora energia
que põe a carne?
Ladino um rato
como na infância o quereríamos
rói os bambus a viga
as horas urdem
e um opaco cisco indizível
aduz as proporções laqueia
a quietação à roda.

Sebastião Alba (1940 -2000)

segunda-feira, 16 de março de 2015

Libérer le souffle...






 Libérer le souffle et chaque mot devient un signal
 Je me rattache vraisemblablement
 à une tradition poétique tradition vague
 et de toute façon illégitime
Mais le terme même de poésie me semble faussé
je préfère ontophonie
Celui qui ouvre le mot ouvre la matière
 et le mot n’est que le support matériel d’une quête

 qui a la transmutation du réel pour fin 

Ghérasim Luca, in L’Inventeur

quarta-feira, 11 de março de 2015

Estrangeiros (quase) sempre


A matéria das palavras

Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

 Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
 Há uma embriaguez de luto em nossos actos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
 um bem sempre suspenso que nos crucifica.

 Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
 e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma perfeição
especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes.

Ana Hatherly

terça-feira, 10 de março de 2015

Sonnet IV

Sonnet  IV


Depuis qu'Amour cruel empoisonna
Premierement de son feu ma poitrine,
Tousjours brulay de sa fureur divine,
Qui un seul jour mon coeur n'abandonna.

Quelque travail, dont assez me donna,
Quelque menasse et procheine ruïne :
Quelque penser de mort qui tout termine,
De rien mon coeur ardent ne s'estonna.

Tant plus qu'Amour nous vient fort assaillir,
Plus il nous fait nos forces recueillir,
Et toujours frais en ses combats fait estre

Mais ce n'est pas qu'en rien nous favorise,
Cil qui les Dieus et les hommes mesprise :
Mais pour plus fort contre les fors paroitre.

 Louise Labé, França (v.1524-1566)
            (version originale)



Depuis qu'Amour cruel empoisonna
pour la première fois de son feu ma poitrine,
j'ai sans cesse brûlé de sa folie divine,
qui ne quitta pas un seul jour mon coeur.

Quel que soit le supplice, et il m'en fit subir beaucoup,
quelle que soit la menace et la ruine prochaine,
quelque pensée de la mort qui met fin à tout,
mon coeur ardent ne s'étonna de rien.

Plus Amour nous attaque avec force,
plus il nous fait rassembler nos forces ,
et nous fait être frais en ses combats ;

mais ce n'est pas qu'il nous aide en rien,
lui qui méprise les dieux et les hommes,
c'est qu'il veut paraître plus fort que les plus forts.


       ( «traduction» en français moderne)

segunda-feira, 9 de março de 2015

Anónimo do séc XX

Partindo de um adágio popular
 ( «trabalhar faz calos»), Isaura Serrano
 teve um trabalho indescritível
 para demonstrar que o trabalho
 é abjecto e desnecessário.

(Referimo-nos, naturalmente,
 à sua aclamada tese O Calo,
 a Culpa, o Colapso, a editar em breve

 pelas Edições do Pousio, Aveiro). 


Por sua vez,


Demasiado lúcido e irresponsável
 para ter opiniõezecas,
 Abraham Stinks refutou, no entanto,
 o conhecido adágio de Martini Rosso:

«existir é uma perda de tempo»
 (Apud Iube Kalinowsky, An Hagiography of Absence,
 Sydney,C.S.S.).

Autor Anónimo,&etc, 1999