quinta-feira, 26 de março de 2015

« A cicatriz do ar»


        Como quem sorve a primeira brisa da terra, ainda intactas
 as areias sobrevoadas pelas aves, começo a percorrer os Livros,
        a decifrar as mãos mais nuas do que quando nasci, a orla
 da escrita e do silêncio, na aridez quiromântica;

        O olhar da Serpente dardeja nas margens, como a transpi
 ração ácida das mulheres corrói os tecidos, empesta o ar,
        e entoo na desolação da manhã uma canção antiga e nua,
 cantam-se os territórios onde alastrou a guerra e o sangue,
a vergonha e o medo;

Como quem serve um servo, a arrogância da servidão e da fome,
 começo a levantar retábulos de silvas nas margens da
 página,
         as estremas da intimidade pública, palavra a palavra nos
lugares da disputa e da usura,
        a sofreguidão demencial do ar, os sobressaltos;

Como quem levanta retábulos de palavras, canção a canção,
 para que as silvas lhe bordem a pronúncia e as tamareiras se
ericem de açúcar solar e resina,
      para que as bocas se atafulhem de terra junto ao mar, na

partilha da arrogância;


       Oh amazonas, oh suicidas, oh escravos do olhar e da fome,
 oh mendigos do ar e da luz, quem vos trouxe pela mão;
      quem vos conduziu o ódio e a destreza; quem vos armou a
voz e os gestos;
       quem vos abandonou na margem da solidão e da Casa?



       Jorge Fallorca (1949-2014),  A cicatriz do ar, Algures 2009

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