domingo, 29 de março de 2015

Partida de cartas: as «regras do jogo»


regras do jogo
há que respeitar as regras do jogo
reconhecer os naipes e a aparência das figuras
saber contar os pontos de cada cicatriz
enganar o estômago com a palha
há que identificar o toque fúnebre dos sinos
à praça! à praça!
sorrir mercê do alarme falso
que não soa ainda nossa a morte
há que escolher bem o parceiro
combinar sinais para a euforia da batalha
para o assomo do desespero
ser discreto na estratégia de subsistência
há que aprender a encaixar a derrota
como vinho rasca que arranha-céus da boca
aceitá-la de um trago, beber fogo
deus nos livra, mas só depois dos trinta
e se acontece juntarmos sessenta e tantos
simulacro episódico de vitórias
ser magnânimo com os adversários, afinal
o garrafão verte para os dois lados
há que prever o sítio exacto dos cotovelos
nesta coroação breve da loucura
a destempo a noite levar-nos-á todos os trunfos
restará a mesa, antecâmara de vala-comum
há que saber, sobretudo, jogar a dinheiro
o dinheiro serve apenas a imoralidade dos ases
quando vierem à pensão sueca recolher-nos as vazas
a nossa mão será sempre fraca
impassível, como uma granada, a vida
baralha e torna a dar
[paus]
velhos na praça batem            
velhas cartas no coração
a que já ninguém escreve
[ouros]
no reino dos computadores
reina o solitário, no reino
dos solitários reina a ruína
[copas]
trovejou, esteve o mundo
para acabar, mas a fronde
das árvores é ás de trunfo
[espadas]
só tens de ir a jogo, assistir
colher uma a uma as lâminas
estancar o medo qual faquir


Renato F Cardoso, catálogo da exposição SuecaPortugal

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