sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Quase afasia

 

Rodeiam-me as palavras

         - só elas-

em sua versão grafada

não tem porquê a soprada

nos meus dias

cada vez mais

despovoados

A qualquer momento

uma avaria surgirá

em meu aparelho fonador

por falta de uso

por míngua de amor

outras partes do corpo

se desativarão

   até chegar a vez do coração.



quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Andante

 

Terra e céu em suspensão

             cinzas pasmo

O bico amarelo do melro

rasga da solidão

  o marasmo

 no canto chega-me

o eros da palavra

o terso estigma a iris na flor

batendo súbito as asas 

a tesão do amor

irrompe apalavra

 brasas crepitam nos braços

centelhas que o corpo

encerra

Devolvei-me senhor

os seus abraços

o fogo da terra

o ondulante mar

e a via láctea no céu

por onde

eu

costumava

andar





quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Novembro e (m) Roma

 

Novembro

 

Jovens e velhos

 agrupam-se

entre as quentes ruínas de Roma,

e sobre elas os plátanos deixam cair

ao som do papel

as suas folhas douradas.

Os jovens falam aos velhos

das coisas que gostam,

e os velhos fazem de conta que nada ouvem.

 

Aldo Palazzeschi, Itália (1885-1974)

     (tradução de João Coles)


 Roma


Roma

é como as ruínas

 

de uma relação amorosa

 

restos de

beleza

 

a céu aberto


Daniel Jonas



 



sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Mareações e manobras


Ah ver o mar

Antes que se abra nova fenda

ou ferida de tanto avançar

dar três passos para trás

tornozelos imersos no mar

 

Foge-se com efeito para a frente

- mais depressa ou menos devagar

 quando há perigo iminente

 é avisado recuar

- bem depressa e menos devagar

 

Siar ciar

vogando a direito

evitando a corrente

Se velas houver

a grande caçar

mareando o estai

ziguezaguear

o vento aparente

       ai!

do leme de ló

ao leme de encontro

vertigem

   Vai- não-vai

 Oooh… Ó

coragem içar

       e

   Ala!

com alento

     como sempre   manobrar


 

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Ser mineral

 

Atenta ao som da negra areia

às formas às linhas

     de material tecido

às vezes gravo

outras … escavo

em ígnea pedra

    o que lhes é devido

- delas ascende a minha voz…

mas é de mim que sempre arranco

         da vibração latente

num canto

                        ao fundo

hialino quartzo

laminados nós

meus frágeis alicerces

                          do mundo




domingo, 7 de novembro de 2021

Deslocado fulgor

 

Noctilúcio- deslocado fulgor

 

Fogueia entre madeiras e livros

ou fosforeja na escuridão

a luz

do seu amor vão

sem som

 lunar combustão

que o há de queimar

Fanal menor de biblioteca filha

fosforescência- do- mar

lume vivo ou vago lume

inseto oitava maravilha

fátuo quase o teu fogo

que hoje

em Faros mesmo

 não brilha.




sexta-feira, 5 de novembro de 2021

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Sem cães nem chuva

 

Chuva batida

gingando chingando 

bátega traz bátega

          tombando

    qual catarata

cem cães...

    Cão é o vento 

com seus ganidos

a faz guinar

Sobre o molhado

   ossos latidos

poeta cuidado!

 inútil chorar.



quarta-feira, 20 de outubro de 2021

"o caldo do meu sangue"

 

 O caldo do meu sangue no qual patinho

 É o que em mim canta, a minha lã, minhas mulheres.

 Sem revestimento exterior. Deleita-se, derrama-se.

 Enche-me de vidros, granitos, cacos.

 Fende-me. Vivo nos estilhaços.

 

Na tosse, no atroz, no transe.

Constrói os meus castelos,

Nas telas, nas tramas, nas manchas.

 Ilumina-os.

 

Henri Michaux, (1899-1984)

  - traduzido por mim, do francês-



terça-feira, 19 de outubro de 2021

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

A piroga


Tinham-me prometido um emprego

 Tinham-me prometido alimentação

 Tinham-me prometido trabalho a sério e esperança

 Na verdade até agora absolutamente nada

 É por isso que fujo

 É por isso que me pisgo nesta piroga

      Didier Awadi, Senegal

 (a tradução, do francês, é minha)




quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Farol


a promessa da mão por estender

           breve fecho do dia

 branda noite em seu descer

me envolve me guia.

domingo, 3 de outubro de 2021

putrefação e germe


2 mãos 1 fórceps

  dois braços dois seios

          em arquejos

  Era outono 

germinando veranico.





terça-feira, 28 de setembro de 2021

«O canto do homem»

 

 É a canção dos sonhadores

 que a si próprios tinham arrancado o coração

  e o levavam na sua mão direita 

         G Apollinaire

 

O canto do homem

 

Quis para a minha aflição

 ruas estreitas, a carícia

 nos meus ombros das boas paredes duras.

 Mas vós, ó homens

 alargaste-as com os vossos passos,

 com os vossos desejos,

 com o bafio do rum,

 do sexo e da cerveja.

 Erro nos vossos labirintos

 multicolores e estou cansado

 do meu lamento.

 

 Assim

 na vossa direção vim

 com o meu grande coração nu

 e vermelho, e os meus braços pesados

 com braçados de amor

 E os vossos braços na minha

 direção se estenderam muito abertos

 e os vossos punhos duros

 bateram-me duramente na face.

 Então eu vi:

 os vossos vis esgares

 e os vossos olhos babosos

 de injúrias.

 Então ouvi

 à minha volta o coaxar, pustulento,

 dos sapos. – Logo:

 solitário, sombrio,

 agora forte e a minha sombra

 minha única companheira fiel,

 projeto o arco do meu braço

 por sobre o céu.

 

Jacques Roumain, Haiti (1907-1944)

(a tradução dos 2 poemas é minha)



terça-feira, 21 de setembro de 2021

«Roterdão»

 

      Como se algum destino

       ou ser na terra

me perseguisse…

 

como se algum caminho eu soubesse

ou sítio houvesse para onde ir…

 

como se a cada passo avançasse

na direcção exacta

para um tempo todo ainda por vir…

 

como se acreditasse em roteiros

de navios que partem

e à espera de alguém acreditasse em paixões…

 

não conhecesse o enorme vazio

do deserto frio onde enregelam

tantos corações…

 

    como se não me perdesse sempre

na imensidão do espaço

e meus braços não me chegassem

para me estreitar num forte abraço…

 

     como se estivesse ainda à procura de algum rumo

visse surgir do nada Aladino envolto em fumo

numa lâmpada de chama ténue a esvair-se…

 

caminhando pelo cais de Roterdão

       guiada por meus pés gelados

     que fingem saber por onde vão


   Isabel Ruth (1940)

                 



segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Na iminência da morte

Impressions élégiaques sur lumière:


 l'avant-mort des escargots

       dévorateurs insatiables

de jardins.

         


    

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

«A noite no dia»


A noite nunca quer acabar e entregar-se

á luz. Por isso emaranha-se em certas coisas: obsidiana, corvos.

Até no solstício do verão, o dia do grande triunfo

da luz, quando os campos de girassóis se empanturram ao sol -

abrimos a melancia e cuspimos as sementes

negras, partículas da noite cintilando na erva.

 

Joseph Stroud, E.U.A. (1943)

- tradução de Luís F. Parrado-

 

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

« Os Pássaros»


 

Estou coberta de pássaros

Vibrantes de pena eriçada,

 Pica-paus, gaios azuis sobre os braços

 Carriças nos dedos.

 Pintarroxos

Na garganta

 E sobre os seios

Duas pombas.

 

 Ancas e ventre

 Com longas asas

 De serafins

 E sobre as pernas

 O leque verde das penas:

 O olho dos pavões!

 

 Mas eles levantam voo

 E eu fico nua

 Martirizada, debicada

 Ensanguentada.


Corinna Bille, Suiça (1912-1979) 

-tradução de Luís F. Parrado-