quinta-feira, 24 de março de 2022

«Mulher ao mar»

 

MAYDAY lanço, porque a guerra dura

e está vazio o vaso em que parti

e cede ao fundo onde a vaga fura,

suga a fissura, uma falta - não

um tarro de cortiça que vogasse;

específico: é terracota e fractura,

e eu sou esparsa, e eu liquidez maciça.

Tarde, sei, será, se vier socorro:

se transluz pouco ao escuro este sinal,

e a água não prevê qualquer escritura

se jazo aqui: rasura apenas, branda

a costura, fará a onda em ponto

lento um manto sobre o afogamento.

 

Margarida Vale de Gato, 1973



quarta-feira, 23 de março de 2022

«MARE NOSTRUM»

 

Prece no Mediterrâneo

 

Em vez de peixes, Senhor,

dai-nos a paz,

um mar que seja de ondas inocentes,

e, chegados à areia,

gente que veja com coração de ver,

vozes que nos aceitem

 

É tão dura a viagem

e até a espuma fere e ferve,

e, de tão alta, cega

durante a travessia

 

Fazei, Senhor, com que não haja

mortos desta vez,

que as rochas sejam longe,

que o vento se aquiete

e a vossa paz enfim

se multiplique

 

mas depois da jangada,

da guerra, do cansaço,

depois dos braços abertos e sonoros,

sabia bem, Senhor,

um pão macio,

e um peixe, pode ser,

do mar

 

que é também nosso

 

Ana Luísa Amaral, (1956)




terça-feira, 22 de março de 2022

Casa em cinzas: o mundo?

 Visitas a ST. Elizabeth

 

Esta é a casa dos loucos.

 

Este é o homem

que está na casa dos loucos.

 

Este é o tempo

do homem trágico

que está na casa dos loucos.

               (…)

Este é o soldado que regressa da guerra.

Estes são os anos, as paredes e a porta

que se fecha sobre um rapaz que dá pancadas no soalho

para ver se o mundo é plano ou redondo.

Este é um judeu com um gorro de papel de jornal

que dança cuidadosamente pelo dormitório

caminhando sobre a tábua de um ataúde

com o marinheiro espalmado

que mostra o relógio

que dá as horas

do infeliz

que está na casa dos loucos.

 

Elizabeth Bishop, EUA (1911-1979)

  Nota: as traduções e versões dos poemas incluídos nos últimos 5 «post» deste «blog» são da autoria de

                                                                     Luís F. Parrado.


segunda-feira, 21 de março de 2022

« De cada vez»

Contínua realidade que me sorves os dias

como hei-de responder-te se vives incluída

dos meus olhos abertos nas ávidas e frias

pedras incertas vida

 

prisioneira do espelho que embacias

de cada vez que a turva suicida

torna ao morrer visíveis

as formas com que comes os meus dias

 

Gastão Cruz, 1941-2022 




domingo, 20 de março de 2022

«Canto à terra»


 

O deus da guerra dispõe-se a partir. Os seus corcéis

empinam se à frente do carro, negros, de longas crinas

e olhos feros, resfolegam ansiosos de começar

a sua viagem para o norte pela abóbada do céu.

 

E no entanto ainda há pouco os dentes afiados

das pérfidas chamas

se alimentavam como uma espada vermelha

nas cidades, fazendo-as em pedaços

-na última e enlouquecida viagem do deus.

 

Deus da guerra! podes roubar-nos o céu

e a terra.

Vida, canto-te o meu canto enquanto se aproxima

                                                                    o ruído

do seu carro.

 

Hannes Pétursson, Islândia (1931) 



sexta-feira, 18 de março de 2022

«As palavras caladas»

 

As palavras caladas

do poema são calcadas

nas guerras- também

nos lugares arrebatados

da hora da mudança, em que os dias

andam à deriva como feno agitado.

 

As palavras caladas

do poema.

Mas renascem

na Terra arrasada

pelo ferro e as vozes.


Hannes Pétursson, Islândia (1931)




quinta-feira, 17 de março de 2022

O pássaro

 

Ando a ser seguida por um pássaro

cujo bico é feito de uma só peça

e não se abre

é como uma sovela

ligeiramente incolor

O que ele quer de mim

não sei,

mas uma coisa é certa

não pode ser morto

E nos seus olhos há uma angústia tremenda

 


Dina Gatina, Rússia (1981)


quarta-feira, 16 de março de 2022

«O monumento»

 

 Não se vê o seu rosto: ele olha para baixo,

Uma espingarda sobre os joelhos cerrados.

Não sente frio nem calor,

Não distingue a neve da chuva.

Não se vê o seu rosto: mas os vivos

Podem imaginar o que permanece escondido

E a sua cabeça inclinada

É a garantia de que ninguém o esculpiu.

 

Afeganistão, a segunda mundial:

Pena que não se comemorem a de Tróia,

A dos trinta anos, a do norte, a dos cem anos,

Não há um monumento comum a todas.

 

Vejo-me como um rosto,

Nada mais que um rosto de olhos fechados,

Um rosto: uma ilha no oceano,

Uma ilha no oceano do vazio,

Um rosto onde se nota o mais pequeno dos traços,

Orientado para o alto, como um hieróglifo,

Um hieróglifo gravado na pedra,

E ninguém para o ler.

 

Andréi Nitchenko, Rússia (1983)




domingo, 13 de março de 2022

Monólogo sobre a miséria

 

Oh, numa noite de chuva e vento

numa noite de neve e chuva

corta- me o frio

o desespero gela-me

A boca encho de aguardente e sal

que sorvo de um cantil

enquanto a barba hirsuta

acaricio e enxugo.

Mulheres levam

 crianças e velhos

         Choram

e pedem comida

- mas são perseguidos

Assim nada se ajusta

e nada muda

Oh! O céu e a terra são vastos,

 mas para nós

são pequenos e duros

O sol e a lua iluminam o mundo,

mas connosco

poupam a luz.

É sempre o mesmo?

 Só eu sinto assim?

 

Cru e sem vergonha

 o mundo abandona- nos

Dele não podemos voar

por não sermos aves.

 

Yamanoue no Okura, Japão, (660?-733)

    -excertos adaptados por mim-




sábado, 5 de março de 2022

«Que volte cedo e bem!»

 

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

 

Reinaldo Ferreira, (1922-1959)



              No plaino jazem               

 abandonados

  frio vento os arrefece


  De balas trespassados

  a morte os apodrece


soldados? capitães?

Meninos de suas Mães.