domingo, 31 de maio de 2020

Torpor e confinamento



         A gaivota

Está um lindo dia para brincar com o vento
quem dera fosse sempre assim, regular e tenso,
ideal para planar de costas e depois, que delícia!
com um ligeiro mover de asas, parar no ar,
e ficar a ver a margem da cidade lá em baixo,
deserta, já sem turistas, o chão limpo,
uns raros transeuntes a trote, dois freaks, um cão,
aquele tipo careca a tirar fotos a poças d’água.
Sinto-me mesmo bem, parado, aqui em cima.
E tenho comido menos lixo, ultimamente;
até reaprendi a pescar, e não me queixo,
sinto o hálito mais fresco, a peixe fresco.
Por mim, ficava aqui em cima para sempre,
a ver a cidade vaga, olha! o cão dos freaks
teve agora um ataque de loucura, e
atacou um grupinho de gaivotas pousadas.
Que se avenham, o dono do cão que as salve.
Não se pense que há amigos entre gaivotas,
cada um por si, somos um mar de solidões.
E se formamos bando, é sem ternura,
é só porque estamos programados para isso;
a solidão mantém-se. Roubamos ovos uns aos outros
e só não comemos os próprios filhos, enfim,
a verdade é que, às vezes, comemos os próprios filhos.
Este rio é das coisas mais belas, sem homens;
e está um dia lindo para brincar com o vento. 
               (07/04/20)
    João Paulo Esteves da Silva


sexta-feira, 29 de maio de 2020

contando "estórias"




"...this is very much connected with the ability or indeed propensity of human beings to hide their real thoughts and feelings, to project versions of themselves that are partial or misleading, and to deceive each other."

"Our fundamental tactic of self-protection, self control and self definition is not spinning webs
 or building dams ( like spiders and beavers) but telling stories, and more particularly connecting
 and controlling the story we tell others - and ourselves - about who we are."


Ian McEwan, Inglaterra (1948)


terça-feira, 26 de maio de 2020

Dias derramados



Bebo de um copo que não tem bordo
 de pé numa escada sem degraus
 durmo numa cama só com o meu corpo,
 o meu corpo que é acumulação dos dias derramados
 quando me movo em sonhos, toda a noite dentro da minha solidão.

 Monto no dorso de um cavalo sem sela
 pedalo na minha bicicleta sem mãos, sem língua, sem fala,
 quando por dentro de um pensamento me movo
  numa caverna de gelo, escorregadia, proibida.
 Como sem mastigar comida que se escapole
 por detrás dos dentes guardiães.
 Faço lume sem fósforos, nado
 sem tocar numa gota, consigo ver sem luz.
 Encontro o meu caminho,
 faço música, sem notas.
         Cecaelia Hagen 
(letra de uma música que ela canta e que eu traduzi)





segunda-feira, 25 de maio de 2020

Esquecer alguns sonhos



            Eles esqueceram alguns sonhos

 Os pássaros mortos caíram, mas ninguém os tinha visto voar,
 ou imaginava donde vieram. Negros, os olhos estavam fechados,
 e ninguém sabia que pássaros eram. Mas todos
 os que os agarraram fitaram o novo céu distante e afunilado.
 Também, escuras gotas caíram. De noite sobre os beirais,
 ou reunidos ao longo dos tectos sobre as camas,
 toda a noite pendiam, misteriosas formas de gotas, sobre as cabeças,
 e caíam agora dos dedos descuidados, rápidos como o orvalho das folhas.
 Onde se tinha visto bagas silvestres tão negras como estas,
 assim brilhando logo de manhã cedo? Armadilhas cruéis
 no ramo mais alto ou debaixo das folhas? Tinham pensado veneno
 e escapado ou- lembrem-se- comido o que havia nessas árvores carregadas?
 Que flores se contraem em sementes como estas, como a columbina?
 Por volta das oito ou nove os sonhos são todos inescrutáveis.

        Elisabeth Bishop, EUA (1911-1979)
        (tradução de M. de Lourdes Guimarães)






domingo, 24 de maio de 2020

Maria Velho da Costa



«Em boa verdade vos digo: que continuamos sós mas menos desamparadas»

     (Barreno / Horta / Costa, in Novas Cartas Portuguesas-carta penúltima)


                    Senhora

 – Senhora, o que te faz tão franzida
 Tão refeita
 Tão suspeita?
 Quem escolhe a mansa vida
 Verá bem o que rejeita.

 – Vai e traz-me um cabelo
 Dum dragão enamorado
 Pois se me falas de amor
 Quero vê-lo feito e provado.
 À volta dar-te-ei guarida
 Sentar-te-ei a meu lado.

– Senhora, o que te traz tão sujeita
 Tão faltosa
 Suspirosa?
 Quem fia, borda e ajeita
 Murcha cedo como a rosa
 Não tem ciência nem prosa
 Não sabe o nome que aceita.

 – Vai roubar o setestrelo
 A um deus mau e zangado
 Pois se me dizes saber
 Quero prová-lo, e habitado.
 À volta dar-te-ei suspeita
 De que não estás do meu lado.

 – Senhora, o que te jaz tão famosa
 Tão ausente
 Tão pungente?

 – Quem escolhe, parte e rejeita.
 Quem parte, vai e não colhe.
 Quem vai, faz e não ama.
 Quem faz, fala e não sente.
 São teus olhos os sujeitos
 São de granito os meus peitos.
 Quem fia, borda e ajeita,
 Quem espera, fica e não escolhe,
 Quem cala, quieta na cama,
  Sou eu, deitada a sentir
 Tua roda de fugir
 Tua cabeça em meu ventre.

As 3 Marias, em 11/3/1971



sábado, 23 de maio de 2020

Mentiras de C. Colombo



           Cristóvão Colombo

O que eu perco de vista hoje ao dirigir-me para oriente
 é o que Cristóvão Colombo descobria ao
 dirigir-se para ocidente
Foi nestas paragens que viu um primeiro pássaro branco
e preto que o fez cair de joelhos e dar graças a
Deus
Com tanta emoção
E improvisar esta prece baudeleriana que se encontra
no seu diário de bordo
E onde pede perdão por ter mentido todos os dias aos
seus companheiros indicando-lhes um ponto falso
Para que eles não pudessem voltar a encontrar o seu caminho

Blaise Cendrars, Suiça/ França (1887-1961)
(a tradução foi feita por mim) 



quarta-feira, 20 de maio de 2020

Clube Asas do Atlântico



Clube Asas do Atlântico

Um clube de rádio, um tecto baixo
 uma mesa de jogo a transmitir
 açores no mito a voar o atlântico,
 um pano verde até ao fim,

          deixaram as cadeiras descansadas,
          mas à espera de destino,
          mesmo assim

 o saber escondia-se nos livros
 de uma biblioteca a meia luz,
 ali sonhei o mundo nas cartas
 do meu moinho de vento insular:

             Era uma vez um pós-guerra
             onde as asas dos aliados
             já eram asas de donos do mar

António Ferra, in Cantigas de Santa Maria



terça-feira, 19 de maio de 2020

« Hola, spleen»



(…) fiquei me perguntando
se hoje estaria chovendo
ou fazendo sol,
se faria frio ou não,
 e se haveria poeira no ar.
 eu sempre me surpreendo
com a poeira que turva a vista:
 de repente no meio do dia
 uma poeira que se ergue,
uma nuvem de poeira,
 pode ser a poeira vinda das coisas quebradas
todos os dias na vida das pessoas
 e eu fiquei pensando
 se estaria muito seco nesse dia ou não
 e pensei que talvez a gente pudesse
 fazer silêncio
 e deixar a escuta aberta
 para ouvir. (…)

(excerto de Hola, spleen)

Marília Garcia, Brasil



domingo, 17 de maio de 2020

traduzir/escrever- zonas cruzadas



7.
quando traduzo um poema
escrevo um poema que não seria escrito
na minha língua
mas que ao ser traduzido                    acaba sendo escrito
na minha língua
quando traduzo um poema
penso em algumas questões                que não seriam colocadas
por um poema na minha língua
mas que acabam sendo colocadas ao se traduzir este poema
quando escrevo um poema
já tendo traduzido outro poema
que não seria escrito na minha língua
                        será que esses dois gestos
se atravessam?


                                                         Marília Garcia, Brasil



sábado, 16 de maio de 2020

Falar com- fala aventura?



…buscando diferenciar as falas-aventuras
 das outras falas
                               a silvina rodrigues lopes escreve:

«se aceitarmos que há na vida das pessoas
 e na cultura dos povos
 aquilo de que não se pode falar
 e aceitando que o poemático é uma das manifestações disso
 devemos admitir que há uma fala que não fala de»

eu queria que fosse uma fala que fala com

talvez uma fala de aproximação e de encontro

Marília Garcia, Brasil (1979)


(excerto final da parte 14 do epílogo de câmera lenta)





quinta-feira, 14 de maio de 2020

A DIFERENÇA QUE HÁ -segundo J. de S.





A diferença que há entre os estudiosos e os poetas
É que aqueles passam a vida inteira com o nariz num assunto
A ver se conseguem decifrá-lo, e estes
Abrem o livro, lêem três páginas, farejam as restantes
(nem sequer todas) e sabem logo do assunto
o que os outros não conseguiram saber. Por isso é que
os estudiosos têm raiva dos poetas,
capazes de ler tudo sem ter lido nada
( e eles não leram nada tendo lido tudo).
O mal está em haver poetas que abusam do analfabetismo,

E desacreditam a gaya Scienza


Jorge de Sena (1919-1978)


domingo, 10 de maio de 2020

Às aranhas



Às aranhas deste quarto

Vós que esperastes aqui antes de mim
 em silêncio mães do silêncio
 sempre soube que estáveis presentes
 pudesse eu ver-vos ou não
 nas nuvens cinzentas nos cantos altos
 fiandeiras das profundezas das sombras

que se repetem sem memória
 erguendo-se por baixo do momento
 quando este respira treme e se foi
 portadoras de uma mensagem não conhecida
 herdeiras de uma linhagem invisível

chegou o momento de agradecer-vos
 por nunca me terem aparecido
ao longo destes anos guardiãs da não palavra
 assídua nesta sala muda enquanto
 o pássaro cantou a chuva murmurou
 e a voz ecoou da estrada

pacientes guardiãs que desvendaram
 em cada som a hora da mosca

           W.S. Merwin
       (a tradução foi feita por mim)


sexta-feira, 8 de maio de 2020

Aterragem



De passagem sobre esta terra

zumbe o motor
 isto é, funciona em círculos concêntricos
 o parafuso imobiliza o aparelho
 atordoado no banco junto à janela
 ver exultando se o solo absorve
 as gotas
 se o vapor sobe
 e se confunde
 com os cabos
 se as linhas cedem
 deslizar monótono até à queda onde se precipitam
 os veículos

 em direcção ao aglomerado compacto
 perto dos fracos, limites
 descer
 andar de cabeça baixa
 sem pedir ajuda
 diluir-se entre a multidão

Adelaida Villela, México (1939)
- a tradução, do francès, é minha-


terça-feira, 5 de maio de 2020

Línguas



Com a língua me lambes
 de doces falinhas me envolves
 Com a palavra na boca estou
 tenho o nome debaixo da língua
de poucas falas sou
 mas decoro tudo
  num ápice na ponta
 da língua sei o sabor
Pensando em voz alta
 deitas falação barata
 bebes as tuas palavras
Não falamos a mesma língua
soltas a tua
viperina
não dou com a minha nos dentes
enches agora linguiça
 da fina
com voz de falsete
Faço ouvidos de mercador.


segunda-feira, 4 de maio de 2020

Língua- comunidade



Sotaque da terra

Estas pedras
 sonham ser casa

sei
 porque falo
 a língua do chão

 nascida
 na véspera de mim
 minha voz
 ficou cativa do mundo,
pegada nas areias do Índico

 agora,
 ouço em mim
 o sotaque da terra

 e choro
 com as pedras
 a demora de subirem ao sol

Mia Couto, Moçambique (1955)



domingo, 3 de maio de 2020

Fala livre e Mãe



«O relatório anual de 2020 da Plataforma do Conselho da Europa para promover a Protecção do Jornalismo denuncia que os ataques à liberdade de imprensa no contexto da pandemia de covid-19 pioraram um cenário já sombrio.»
                                        excerto do dNotícias.pt , de 2/5/2020

                                       Uma história pequenina


- Tu és linda mãe! dizia o pequeno Carlos fixando-a nos olhos negros. 
Ela sorriu-se, sentindo-se a doce carícia daquela boca gentil.
- E podes acreditar-me, cara mais linda que a tua ninguém encontra, não há! Das tuas mãos é que eu não gosto.
- Sim, são feias tens razão. De hoje em diante, meu filho vou evitar que tu as vejas...
- E a propósito, respondeu o pai, precisas de ouvir uma história muito bonita, embora a sua lição seja um bocadinho triste.
"Vem para aqui para o pé de mim. Senta-te; não te distraias. 
E começou a contar:
Certa noite uma criança dormia tranquilamente quando por descuido inexplicável, a luz mortiça da lamparina incendiou as cortinas de cambraia do seu berço. aos gritos da mãe, correu a mãe, aflitíssima, que sem hesitar lançou os braços para o filho arrancando-o àquela morte tão má. 
E aquelas mãos muito brancas, com as veias muito azuis, tornaram-se disformes, horrivelmente queimadas. 
Depois...
O pequeno não aguardou a conclusão; correu para a mãe e disse abraçando-a num beijo de alma: 
- As tuas mãos são as mais belas do mundo!

                    António Botto (1897-1959), no Livro das Crianças



sábado, 2 de maio de 2020

Aquele Maio




TO THIS MAY

They know so much more now about
the heart we are told but the world
still seems to come one at a time
one day one year one season and here
it is spring once more with its birds
nesting in the holes in the walls
its morning finding the first time
its light pretending not to move
always beginning as it goes

W.S.Merwin