segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Lisboa posta em desassossego



     Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra – ou, antes, de luz e de menos luz – a manhã desata-se sobre a cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos telhados que a luz do alto se desprende – não deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
                Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança é  literária. Manhã, primavera, esperança – estão ligados em música pela mesma intenção melódica; estão ligados na alma pela mesma memória de uma igual intenção. (…..)
                        Lembro-me de repente de quando era criança e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã, e tenho alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste. A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por trás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de aparecidas. Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.

                        Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, Ed. Assírio e Alvim 


Sem comentários: