Por entre a casaria, em intercalações de
luz e sombra – ou, antes, de luz e de menos luz – a manhã desata-se sobre a
cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos
telhados que a luz do alto se desprende – não deles fisicamente, mas deles por
estarem ali.
Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança
é literária. Manhã, primavera, esperança
– estão ligados em música pela mesma intenção melódica; estão ligados na alma
pela mesma memória de uma igual intenção. (…..)
Lembro-me de repente de
quando era criança e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a
vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã, e tenho
alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste. A criança ficou mas
emudeceu. Vejo como via, mas por trás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se
me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de
aparecidas. Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso
estrangeiro, hóspede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e
ouço, velho de mim.
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, de Bernardo
Soares, Ed. Assírio e Alvim
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