Hoje percebi que as estrelas moribundas se mantêm obstinadamente penduradas nos interstícios do céu para nos maravilharem com o seu brilho
Vi também um meteoro radiante embater numa crina em desalinho e enxames de meteoroides lançarem-se, como baleias, para ( a ) terra, festejando com estrépito o seu fim ; fogo- de-artifício da abóbada celeste, na vertigem da queda ainda quiseram acolher desejos mudos.
Com a cabeleira em desalinho hão de irromper cometas na noite escura; cavalos ciclicamente cegos, provavelmente só os avistaremos uma vez.
A hora está a mudar neste momento: teremos menos sol que tanta falta me faz... comecei a «dar» ( e a fotografar também...pelos não vistos ) erros ortográficos...estou mais perto dos que estão longe do que daqueles que mais perto deveriam estar...anda qualquer coisa bizarra no ar!
O sol de verão quase a acabar As abelhas zumbem a sua canção de luas amarelas Vestidas de veludo negro zumbem zumbem uma canção de embalar Carl Sandburg ( trad. Jorge Sousa Braga)
Esquecer-me de mim
Outubro chegou dominado pelas chuvas,
e os outros meses seguiram-no até aqui.
De repente este tempo amontoado ocupa tudo,
o verde da casa, as cadeiras, a manta que cobre o soalho
quando no verão me recosto a ler.
Em mim não é possível o abandono do tempo,
a graça que o esquecimento traz consigo
haver-me -ia salvado desta invasão.
Agora devo caminhar com cuidado
para não me maltratar com tantas memórias.
Enganar-me-ei ou será verdade o que vou dizer?
Renuncio a esta visita, a solidão não me amedronta.
Quando era criança ia ver os aviões-enormes pássaros de aço-que aterravam num aeroporto imenso, trazendo muitas e desvairadas gentes no seu bojo.
Hoje, que já sou grande, entretenho-me a ver navios cujos passageiros nunca hei-de encontrar.
De há vários anos a esta parte guardo numa caixa de papelão postais e cartas que gostaria de receber e que escrevo-estando ou não em casa-meto num envelope abrilhantado pelo selo mais bonito da estação dos correios da praçae deixo no marco mais próximo.
Quando sufoco, perco-me nas ruas onde frequentemente avisto gente desvairada e respiro fundo.
O haver ainda árvores andorinhas poderia ser um consolo ainda que elas já não saibam o que é florescer, voar e que nós continuemos na sombra imóvel a encostar palavras a palavras como se nada nos faltasse Hans-Ulrich Treichel, Como se fosse a minha vida
Convosco me deito
convosco me levanto
com a graça contida
no sopro do canto
«...Pois para quem haveis escrito
senão para quem vos ame e queira» Jorge de Sena, Visão Perpétua
sábado, 19 de outubro de 2013
defesa do poeta
Natália Correia
Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em criança que salvo
do incêndio da vossa lição
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além
Senhores três quatro cinco e Sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.
No centenário do nascimento de Vinicius de Moraes.
«...As gralhas gritam. Naturalmente voam/em voo vibrante para a cidade. Quem/ não tem pátria olha/ para o céu.»
Ulla Hahn, Asede entre os limites...
Vilancete
Entre mim mesmo e mim não sei que se alevantou, que tão meu imigo sou.
Uns tempos, com grande engano, vivi eu mesmo comigo, agora no mor perigo se me descobre o mor dano. Caro custa um desengano e pois me este não matou quão caro que me custou.
De mim me sou feito alheio, entre o cuidado e cuidado está um mal derramado que por mal grande me veio. Nova dor, novo receio foi este que me tomou: assim me tem, assim estou.
RIBEIRO, Bernardim. "Entre mim mesmo e mim". In: SILVEIRA, Francisco Maciel (org.). Poesia clássica São Paulo: Global, 1988.