domingo, 27 de dezembro de 2020

Ter de...


Primeiro:

            Tens de enfrentar

             aquilo que te rodeia

             tens de estar aqui                                                                                                              

              mas

              de outra maneira

              tens de estudar o que é próprio

               e que seja

               não soberba

               somente força

 

Segundo:

             Tens de e tens de

              como o silvo de um chicote

 

 

Ryszard Kapuscinski, Polónia (1932-2007)

            - a tradução, do espanhol. é minha- 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Torpor

 

sem tempo para nada

abro janelas

neste dezembro confinada

a forma eleita para dizer

     o que me resta

é esta

    quase só magia

    reais    frialdade

                letargia


sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

outono avançando

 

Roupa encharcada

 chapéu que rebola

         desabridos

chuva e vento fustigam

 o viandante atrevido






quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Já não aqui

No aqui

 

Hojas verdes tiradas por todas partes

Piedras prometidas a un partir probable

 Murallas cuya calma se percibe

 Alguien que hoy estuvo aquí

 mañana estará

 no aqui

 Lienzo prendido de su sangre

 Palavras fuera de sus formas

Buganvillas

 Y aire

 

Mohammed Bennís, Marrocos (1948)

(tradução de Luís M.Cañada)




sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Os mortos

 

Remorso por qualquer morte

Livre da memória e da esperança,
ilimitado, abstrato, quase futuro,
o morto não é um morto: é a morte.
Como o Deus dos místicos,
de Quem todos os predicados devem ser negados,
o morto ubiquamente alheio
nada mais é do que a perdição e ausência do mundo.
Tudo dele roubamos,
não lhe deixamos nem uma cor nem uma sílaba:
aqui está o pátio que já não compartilham seus olhos,
ali a calçada de onde espreitavam suas esperanças.
Mesmo o que pensamos poderia estar pensando ele também;
dividimos como ladrões
o fluir das noites e dos dias.

Jorge Luis Borges, Argentina (1899-1986)

       - tradução p.b de Nelson Santander-




quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Sem importância

 Nada, mas nada mesmo

 tem a menor importãncia


Nem antes

 Nem depois

 Nem durante


Francisco Alvim, Brasil, 1938



quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Vitrines 1, 2, ...


como tu Paula 

Sinos mas a dobrar  

dou por mim

                                                              a querer saber

                                                              a perguntar

                                                                             - será a minha própria respiração

            ou a dos outros

     o que embacia a vida?


 


 

 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Caixa de costura

(…) na breve partícula de seiva não se entende a pétala,

 mas lá é que se é primeiramente.

muito antes da idade, muito antes dos afectos

nos multiplicarem o rosto.

de resto pouco há a dizer: de livro a capítulo,

de capítulo ao esquecimento cada vez mais branco da página.

os outros partem mal nascemos e renascemos,                                                                                                                                                                                                                   tornamos por extenso no coração ao mendigo.(...)

                              Leonardo




.


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A girafa

 Hoje é o Dia de Todos os Deuses

Hoje é o dia de todos os deuses.
A maresia subirá breve
ao terceiro andar.

Virá como quem pede mais um pouco
desta tarde.
Deixo-me ficar enquanto vou

indecisa como quem não sabe.
Se escolho rainha se rei
só eu decido, só eu sei.

Hoje é o dia de todos os deuses.
A qualquer deles vou pedir
não só a Zeus, não só a Argos,

não só a Afrodite,
a que o amor consente de todos os modos,
à brisa pedirei

que me deixe partir
a voz em arco
e tudo fruir de outro modo

Ainda que hoje não seja o dia
de todos os deuses
direi
não tenho género ou identificação bastante

que se assemelhe
ao estar
preto no preto branco no branco

Helga Moreira


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Velha árvore

Velha árvore plantada à beira de um caminho.

 Muitas flores nos ramos, a relva a seus pés.

 Os que passam não viram a árvore na sua juventude,

 Mas ela viu-os a todos envelhecer pouco a pouco.

 

               Hsu Ning, China (Séc. IX) 



domingo, 25 de outubro de 2020

Pensamos

E penso


a face fraca do poema/ a metade na página

partida

Mas calo a face dura

flor apagada no sonho

Eu penso

A dor visível do poema/ a luz prévia

Dividida

Mas calo a superfície negra

pânico iminente do nada.


Ana Cristina César, Brasil (1952-1983)

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Poemário Formoso

Por favor, recomenda-me um poemário

                                                                                                                                                                    Queria um poemário
que nunca tenha magoado o coração de uma pessoa
que nunca antes tenha tido o coração partido
e que nenhuma das suas palavras
me pudesse fazer pensar em ti 

Queria um poemário
que usando só algumas palavras
pudesse dizer o decorrer da minha vida toda
queria que as suas palavras nunca tivessem forçado
a desaparecer um bosque na fronteira, nem uma cultura a esconder-se

Queria um poemário
que não envolvesse imaginação, superstições ou amor
queria que as suas palavras se tornassem realidade
e fossem provas desta vida

                                                                                                                                                                      Queria um poemário razoável                                                                                                                      que cancelasse tudo o que não é apropriado ao momento                                                                      sobre o meu corpo                                                                                                                                        o teu sexo                                                                                                                                                      e toda esta época que é tua                                                                                                                            e a tua distância nela

Queria um poemário que todas as pessoas recomendassem                                                                         queria que as suas palavras
fossem capazes de fazer que tu ficasses para sempre

                                

Pan Bo Ling (Taipé, 1993)

     ( a tradução- do espanhol-é minha) 


 


domingo, 18 de outubro de 2020

Dizem

 

Dizem que a vida me foi dada à borla.
Só eu sei quanto isso me custa.


Dizem que não penso nos outros.
Deus sabe o tempo que gasto a pensar nisso.


Dizem que tenho um ego agigantado.
É a única coisa que tenho.


Dizem que vou acabar sozinho.
Têm razão.


Miguel Martins (1969)




sábado, 17 de outubro de 2020

Embonecrada

 

Jenny

ela era toda porcelana de terra,
flores predominantes no odor jovem
juventude fabricada
no dinheiro ilegal dos casinos.
era toda ela morangos suculentos
entre as pernas
bolos coreanos em forma de coração
cappuccinos dignos de instagram.
olhos de amêndoa em época de Páscoa
como quem quer comer o corpo e o sangue.
tinha uma altura nobre
e um cabelo livre.
tinha lágrimas de pérolas
desejos em forma de diamantes.
ele queria alguém real,
ela queria um príncipe português
com um intelecto barbudo.
ele queria ler Lu Xun,
ela queria jantar de amêijoas à beira mar.
ele voltou para a terra,
ela cometeu o mais elegante suicídio,
deixando os brincos Chanel no cadáver pendurado na sala de jantar.

Sara F. Costa, 1987




sexta-feira, 16 de outubro de 2020

No dia do pão

 

O quotidiano "não"

Estamos todos bem servidos
de solidão.
De manhã a recolhemos
do saco, em lugar de pão.

Pão é claro que temos
(não sou exageradão)
mas esta imagem do saco
contendo um pequeno «não»

não figura nesta prosa
assim do pé para a mão,
pois o saco utilizado,
que pode ser o do pão,

recebe modestamente
a corriqueira fracção
desse alimento que é
tão distribuído, tão

a domicílio como
o leite ou o pão.
Mas esse leitor aí
(bem real!) já diz que não,

que nunca viu no tal saco
o tal «não».
Ao que o poeta responde,
sem maior desilusão:

- Para dizer a verdade,
eu também não...
Mas estava confiante
na sua imaginação

(ou na minha...) e que sentia
como eu a solidão
e quanto ela é objecto
da carinhosa atenção

de quem hoje nos fornece
o quotidiano «não»,
por todos os meios, desde
a fingida distracção,

até ao entre-parêntesis
de qualquer reclusão...

             Alexandre O´Neill (1924-1986)





domingo, 11 de outubro de 2020

Ítaca - vista pela Nobel

Ítaca 

 

O ser amado não

precisa viver. O ser amado

vive na cabeça. O tear 

é para os pretendentes, suspenso 

como uma harpa de brancos filamentos. 

Ele era duas pessoas. 

Era corpo e voz, o fácil 

magnetismo de um homem vivo, e então 

o sonho revelado ou a imagem 

formada pela mulher manejando o tear, 

ali sentada num salão cheio 

de homens de mentes literais. 

Se te causa pena 

o mar enganado que tentou 

levá-lo para sempre 

e devolveu apenas o primeiro, 

o verdadeiro marido, deverias 

sentir pena desses homens: eles não sabem 

para o que estão olhando; 

eles não sabem que quando alguém ama dessa maneira 

o manto se torna um vestido de casamento.

 

Louise Gluck

(tradução de Pedro Gonzaga) 



quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Outono 10º


 morre a vinha

 abraçada nas árvores


 pousio de gestos antigos

 emparcelamento

 de pequenas solidões

 sem rosto.


 Francisco Duarte Mangas (1960)


segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Mar estreito




The Sea Has Its Transformations... Make Way 

Whoever saw a sea so narrow
narrow narrow
like the pupil of an eye
I mean - who
I have seen
and it's narrowing still
hardly space enough for the sputter of a strange gull
small fish can find no space in which to make a turn

Turn the discourse around
Language alone discards the images and disperses them
It is not me
language alone
So the sea invades the alleys
tinier than the gurgle of snails
as they suffocate

Hardly enough of it to make a hat
for the island, solitary, standing
in the cold
The solitary island remains
head bare and alone
The wind dispatches news to it
the storm, which is coatless, does not arrive

Narrow
We don't have enough of it to make a shirt
for a child
Smaller than a handkerchief waving goodbye
A narrow sea like this
what am I to do with it? 

A sea that has claws and is fiercer than
a bird betrayed
He who knows the tiny narrow sea
has the right to set sail for weeping
for the island is bigger than the sea
the sea

Bigger, bigger
more spacious and glorious
open to the heavens and to names
and to secrets not to be revealed
and the sea is narrower than books and prison cells
more constricted than the meetings
between a prisoner and his wife



It doesn't hear or see





sábado, 5 de setembro de 2020

Refúgio 2



You can add up the parts
But you won't have the sum
You can strike up the march
There is no drum
Every heart, every heart
To love will come
But like a refugee

Leonard Cohen (excerto)



quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Refúgio


(...) íamos compreender de imediato
que estávamos assentes num caiaque velho
equipado à pressa com um motor artesanal
Um destroço exumado do lodo
para os meios únicos da causa
e remendado sem rima ou razão                                                                                                                                        que não tinha (esta cobaia)
nenhum saber das coisas do oceano                                                                                                                                     ao invés das nossas canoas de antanho
que passavam a barra flexíveis e intrépidas
e se afastavam com um balanceio orgulhoso                                                                                                                      Se nos tivéssemos feito ao largo em plena luz do dia
teríamos visto entre nós sentada de viés
a morte que para ocupar menos espaço
cruzava as pernas como santa de pau carunchoso(...)

                 (excertos de um livro de S.K. que ando a traduzir)
                                                                                                             
Embarcação financiada por Banksy resgatou 219 migrantes — e pede ajuda  urgente - Internacional - MAGG
esta foto não foi tirada por mim!- mas gosto muito dela.


(Mas o que é uma viagem
a não ser a união da miragem à impaciência...)
E pensar que podíamos ter remado
pescoços quebrados e pulsos em diligência
                                 Desenhar uma parábola perfeita com os nossos corpos encostados                                                 Fazer a trajetória da ínfima deslocação dos nossos gestos infinitamente repetidos
E pensar que fintando as vagas poderíamos ter remado
remar apenas para matar o tempo
e escarnecer da morte

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Casa mansa


         












                                                                               

sábado, 8 de agosto de 2020

Dá fundo- flutuando



Praias extensas invisíveis muros antes e dentro delas dá fundo doí ainda mais fundo tanto sol desperdiçado sem a frescura da água à beira tão longe porém muralha a distância cremes máscaras proteção? dá fundo o marulho quem me dera sem roupa e sem dor flutuando na crista azul profundo das ondas-   flutuando       só

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Deambular em alerta



O novo flâneur II

navega
num informático oceano
feito de simulacros
de imaginadas redes de sentido

Olha o écran
o novo espelho
que figura e desfigura
o seu medo maior

Onde é que há
um espelho que tranquilize?


A imagem é só ela:
uma constelação de impasses
um palimpsesto
feitos de interfaces.

Ana Hatherly 

(texto publicado em 2001)



domingo, 19 de julho de 2020

Marulho de mar



Molhar as plantas

tudo tem barulho de mar
enceradeira isopor carro
em movimento aerosol
espirro pistola moeda

telha bombardeio cigarro
queimando pia degradê
cãimbra inseto monge
sua vizinha o futuro

tem barulho de mar
na camiseta no quadro
chinelo aeroporto gaiola
panela caverna birita

beijo tem biblioteca
também um curió bola
de chiclete sobretudo
um dinossauro alado

tem mar de todo tipo
de barulho e dentro
de cada mar um ralo
entupido de cabelos.


Bruna Beber, Brasil, 1984


segunda-feira, 13 de julho de 2020

No fundo da memória, uma fera




É a violência que dita os nossos percursos

como a paixão que se extingue em mãos indomesticáveis,
 o pulsar das linguagens que dominamos
 dentro de cada cicatriz, uma memória
 dentro de cada reino, um tirano.
 é de violência que somos feitas
 como acordar para uma ressaca infinita
 e cancelar a noite, apagar os emails onde nos ofendemos.
há um animal selvagem no fim da memória
alimenta-se do furor das coisas
aquelas que são atiradas para o chão e partem
e se desfazem em tantos pedaços inalcançáveis até serem
a confusão que trazemos por dentro.

Sara F. Costa, 1987


domingo, 12 de julho de 2020

Momentos






Ponto assente: vamos morrer. A questão é quando e como. Na verdade, o como não chega a ser questão. Podemos morrer de morte súbita, de morte lenta, de acidente, assassinados, podemos pôr termo à vida. Que importa? A questão essencial é quando vamos morrer. Se esta dúvida nunca atormentou o leitor, ponha os olhos em Adalberto Pirralha. Morreria para saber quando seria o seu momento fatal.

               (excerto de Call Center)

          Henrique Manuel Bento Fialho, 1974

sábado, 11 de julho de 2020

Sabor/Rumor



esse oculto sabor das coisas fluidas!

 um silvo que celebra o sol
 como se um chamamento:
 é um favo, uma flor, a mamangava,
é o zoom de uma asa mordida,
 e a pulsação do silêncio miúdo
 celebrando a vida
do voo mínimo à breve meta florida,
 um zumzum de girassol
 em flor, em favo,
 um pouso, enfim,

 e a sangrenta paz pulsando
 em todo silêncio:

esse oculto rumor das coisas mínimas!


(autor não identificado)