sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Espigas



     -...a melhor? talvez; a mais fácil, seguramente!

                                                         extrato de um debate sobre técnicas de tradução.

«Canções de uma ilha»-mar e vulcões


*
Quando alguém parte, tem de deitar
ao mar o chapéu com as conchas
apanhadas ao longo do Verão,
e ir-se com o cabelo ao vento,
tem de lançar ao mar
a mesa que pôs para o seu amor,
tem de deitar ao mar
o resto de vinho que ficou no copo,
tem de dar o seu pão aos peixes
e misturar no mar uma gota de sangue,
tem de espetar bem a faca nas ondas
e afundar o sapato,
coração, âncora e cruz,
e ir-se com o cabelo ao vento!
Depois, regressará,
Quando?
Não perguntes.
*
Há fogo sob a terra,
e a chama é pura.

Há fogo sob a terra,
e é líquida a pedra dura.

Há uma corrente sob a terra,
que entra em nós às golfadas.

Há uma corrente sob a terra,
que nos chamusca as ossadas.

Virá um grande fogo,
virá uma corrente sobre a terra.

Nós seremos testemunhas.

Ingeborg Bachmann, O tempo aprazado.
(trad.: Judite Berkemeier e João Barrento)


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Paris- banlieue - terre d' éxil

Saint-Ouen’s Blues

Un arbre sans une branche
Un oiseau criant dimanche
L'herbe rase par ici

Des godasses pas étanches
Très peu d'atouts dans la manche
Une sauce à l'oignon frit

Un phono sur une planche
Un accordéon qui flanche
Des chats des rats des souris

Un vélo coupé en tranches
Un coup dur qui se déclenche
Des voyous des malappris

Un vague vive la Franche
Par un Auvergnat d'Avranches
Les Kabyles les Sidis

La putain qui se déhanche
Un passant séduit se penche
C'est cent sous pour le chéri

Des cheveux en avalanche
Des yeux non c'est des pervenches
Des jolies filles de Paris

Ma douleur qui s'épanche
La fleur bleue ou bien la blanche
Et mon cœur qu'en a tant pris

Et mon cœur qu'en a tant pris
À Saint-Ouen près de Paris

L'Instant fatal, Raymond Queneau






América do sul - ainda



sábado, 25 de janeiro de 2014

la vie en rose


Pouvoir

Il la saisit au vol
L’empoigne par le milieu du corps
La ceinturant de ses doigts robustes
Il la réduit à l’impuissance

Vertige la main dominante
Couvre toutes les distances

Sans plus bouger que sa proie.

Paul Éluard et Man Ray



 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Dans les mains



Des nuages dans les mains

Ce désespoir confus
Source impalpable nuit de pluie
Loin des feuilles naissantes
Loin des larmes salubres
Ce dédain de l’orient
 Ce paradis livide
Cette marche en arrrière
Incrédule exténué
Vers quelques souvenirs
.

Le remède miracle accord cadeau confiance.


L’attente
Je n’ai jamais tenu sa tête dans mes mains.

Paul Éluard, Man Ray, Les mains libres

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Rimbaud et les mots


Voyelles
 
A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles,
Je dirai quelque jour vos naissances latentes:
A, noir corset velu des mouches éclatantes
Qui bombinent autour des puanteurs cruelles,

Golfes d'ombre;
E, candeurs des vapeurs et des tentes,
Lances des glaciers fiers, rois blancs, frissons d'ombelles;
I, pourpres, sang craché, rire des lèvres belles
Dans la colère ou les ivresses pénitentes;

U, cycles, vibrements divins des mers virides,
Paix des pâtis semés d'animaux, paix des rides
Que l'alchimie imprime aux grands fronts studieux;

O, suprême Clairon plein des strideurs étranges,
Silences traversés des [Mondes et des Anges]:
O l'Oméga, rayon violet de [Ses] Yeux
                                                         Arthur Rimbaud

...surtout quand ils deviennent l'unique possibilité de vivre.






quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Moments de pluie




Il pleure dans mon coeur

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville ;
Quelle est cette langueur
Qui pénètre mon coeur ?

Ô bruit doux de la pluie
Par terre et sur les toits !
Pour un coeur qui s'ennuie,
Ô le chant de la pluie !

Il pleure sans raison
Dans ce coeur qui s'écoeure.
Quoi ! nulle trahison ?...
Ce deuil est sans raison.

C'est bien la pire peine
De ne savoir pourquoi
Sans amour et sans haine
Mon coeur a tant de peine !


Romances sans paroles, Paul VERLAINE 






domingo, 19 de janeiro de 2014

Canção de embalar



Lullaby


-Try to have a rest
  a simple break
  a deep blue sleep
  as moon grows up...

- Cristais de gelo nos separam
   mas
   é com ele que eu durmo
   e é nele
   que eu descanso,
      mãe.

Cristais de gelo


sábado, 18 de janeiro de 2014

Cai,cai, cai- a bolsa do Ary





          Poeta castrado, não!

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado      não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é seu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já se não fala
‑ é tão vulgar que nos cansa
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
‑ a morte é branda e letal –
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
‑ Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
‑ Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
demagogo       mau profeta
falso médico       ladrão
prostituta       proxeneta
espoleta       televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
    José Carlos Ary dos Santos

Povo triste


Anna Akmatova (1888-1966)

Para que me servem exércitos de canções
E o fascínio da poética sentimental?
Para mim na poesia nada tem importância
A não ser os homens.

Quando souberes de que lixeira
Saem os versos, sem vergonha,
Como uma flor amarela na cerca,
Como um cacto ou um cogumelo.

Um grito de fúria, alcatrão com cheiro fresco,
Bolor escondido na parede…
E a poesia já soa fervente, terna,
Para minha e vossa alegria.
                  
           (tradução de Manuel de Seabra)




quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Bailes


Pois nossas madres van a San Simon
de Val de Prados candeas queimar,
nós, as meninhas, punhemos de andar
con nossas madres, e elas enton
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.

Nossos amigos todos  lá irán
por nos veer, e andaremos nós
bailando ante eles, fremosas en cós,
e nossas madres, pois que alá van,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.

Nossos amigos irán por cousir
como bailamos, e podem veer
bailar moças de bon parecer,
e nossas madres pois lá  queren ir,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.

Pero de Viviãez, CV 336, CBN 698


Indispensáveis



Escutai!

Escutai!
Certamente se há estrelas acesas –
é que são necessárias a alguém?
É que alguém as deseja assim?
É que alguém chama a este escarro jóia?
E abrindo caminho à força
pelas borrascas de poeira do meio-dia,
chega a Deus,
temendo chegar tarde,
chora,
beija-lhe a mão nodosa,
implora –
que quer uma estrela de qualquer maneira!
Jura
Que não pode suportar uma vida sem estrelas!
E depois
passeia angustiado
mas fingindo-se calmo.
Diz para alguém:
“Agora tudo bem?
Não tens medo?
Não?”
Escutai!
Certamente se há estrelas acesas 
é que são necessárias a alguém?
É que são indispensáveis,
para que todas as noites
por cima dos telhados
uma estrela pelo menos se acenda?! 

Vladimir Mayakovsky (1893 – 1930)




terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Antifado...


Inércia de estilo

Na vida, na arte, na luta, onde te derrotam,
O mais terrível é a inércia de estilo.
É o hábito que , parece, se torna consciente.
É terminar uma coisa e não ficar aliviado.
É ter mudado e pensar como antes.
É aspirar à verdade e mentir como um impostor.

É a alma sofrer e não lhe dar atenção.
É estar certo e trair-se.
É já não ter asas, mas só uma pluma,
É já não confiar – temer a falsidade.

O estilo é coragem. Fazer uma declaração de coragem!
Tudo perder, mas não desistir das ilusões –
Mesmo que o coração esteja pequeno já…
 A justiça acabou – também possivelmente começou.
Quem imagina derrota-não evolui...

O mais terrível é a inércia de estilo.


  Naum Korzhavin (1925)- tradução de Manuel de Seabra






Desfado alado


segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

«In media res»

XXIII

...entrando
poro a poro
pela mão 
que escreve,
encaminhando-a
entre 
a pouca luz 
do texto 
à sílaba inicial
da única palavra
que é 
ao mesmo tempo
 água e pedra:sombra,
 som (...), ...

                      Carlos de Oliveira

domingo, 12 de janeiro de 2014

Temporal






Querido temporal, aproxima-te. Para ti reservei esta cadeira tão antiga como tu e, se por acaso perderes a  impetuosidade, haverá substitutos de colher para mexer o açucar do café e uma tuba até. Confortável no sofá laranja quente, pintar-te-ei de uma cor que eu invente.

Cabo Verde, anjos e «Visões»-última apresentação



Anjos 2º


DER GLUCKLOSE ENGEL

Hinter ihm schwemmt Vergangenheit an, schüttet Geröll auf Flügel und Schultern, mit Lärm wie von begrabnen Trommeln, während vor ihm sich die Zukunft staut, seine Augen eindrückt, die Augäpfel sprengt wie ein Stern, das Wort umdreht zum tönenden Knebel, ihn würgt mit seinem Atem. Eine Zeitlang sieht man noch sein Flügelschlagen, hört in das Rauschen die Steinschläge vor über hinter ihm niedergehn, lauter je heftiger die vergebliche Bewegung, vereinzelt, wenn sie langsam wird. Dann schließt sich über ihm der Augenblick: auf dem schnell verschütteten Stehplatz kommt der glücklose Engel zur Ruhe, wartend auf Geschichte in der Versteinerung von Flug Blick Atem. Bis das erneute Rauschen mächtiger Flügelschläge sich in Wellen durch den Stein fortpflanzt und seinen Flug anzeigt.

                                                                            Heiner Muller


 O ANJO DA DESVENTURA


 Atrás dele o passado dá à costa, acumula entulho sobre as asas e os ombros, um barulho como o de bombos enterrados, enquanto à sua frente o futuro se amontoa e lhe comprime os olhos e  lhe rebenta os globos oculares como explodem estrelas, e transforma a palavra em mordaça sonorosa que o estrangula com o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o bater das suas asas, nesse murmúrio ouvem-se pedras a cair atrás, por cima e à sua frente, cada vez mais ruidosas, enquanto há o movimento impetuoso mas inútil, e espaçadas quando ele abranda. Então, fecha-se sobre ele o instante: no pedestal, rapidamente atulhado, o anjo da desventura encontra a paz, à espera da História na petrificação do voo, do olhar do sopro. Até que novo ruído de portentoso bater de asas se propaga em ondas através da pedra e anuncia  o seu voo.







Visões- a partir de Visões Fugitivas de S Prokofiev e de poetas russos e soviéticos


Respigar memórias através de sons. O mesmo material em linguagens diferentes, nem sempre acessíveis porque transgressoras por vezes.
Não ter nem «fazer ouvidos de mercador», eis o esforço que é pedido a quem se desloca para partilhar as nossas visões-escolhas individuais assumidas por um coletivo-proposta necessariamente fragmentária de interpretação do mundo e das suas loucuras.
Juntar poetas, cineastas e um compositor que, tendo vivenciado a revolução russa, um momento histórico cuja importância ninguém hoje contesta, abriram simultaneamente caminhos tão novos na senda da criação que foram censurados pelo novo regime; reuni-los para consubstanciar inquietações e desejos transversais ao ser humano de que foram porta-vozes; para relembrar o papel do sonho e da arte na luta contra a morte que naturalmente virá e contra aquela que frequentemente nos querem impor; para ouvir, recordar, falar a todos de tudo o que lhes doeu e que nos aflige também, para melhor e mais actuantemente vivermos- eis os pilares que estruturam as visões que corporizámos em múltiplos e imagéticos sons.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Anjos

1ºanjo:

ICH BIN DER ENGEL DER VERZWEIFLUNG

Ich bin der Engel der Verzweiflung. Mit meinen Händen teile ich den Rausch aus, die Betäubung, das Vergessen, Lust und Qual der Leiber. Meine Rede ist das Schweigen, mein Gesang der Schrei. Im Schatten meiner Flügel wohnt der Schrecken. Meine Hoffnung ist der letzte Atem. Meine Hoffnung ist die erste Schlacht. Ich bin das Messer mit dem der Tote seinen Sarg aufsprengt. Ich bin der sein wird. Mein Flug ist der Aufstand, mein Himmel der Abgrund von morgen.

EU SOU O ANJO DO DESESPERO


Sou o anjo do desespero. Com as minhas mãos distribuo o êxtase, o atordoamento, o esquecimento, o gozo e a dor dos corpos. O meu discurso é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o medo. A minha esperança é o último sopro. A minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com que o morto abre  o caixão. Sou o que ainda não sou. O meu voo é a revolta, o meu céu  o abismo de amanhã.

                                                            Heiner Muller

                                                       (Tradução «a várias mãos» : as de J. Barrento, Luís Costa e a minha mão direita).





Nota: como veem, há quem persista na sua                                                                                                                                            crença,convencido que anjos só os há da guarda




Assombrosas caem as estrelas



                 9
Eis-me no centro do assombro,
onde não há distinção nenhuma
entre ser queimado e ser fogo.

No centro do assombro,
mordido pelas chamas
e a mordê-las;


VII
O pulsar
das palavras,
atraídas
ao chão
desta colina
por uma densidade
que palpita
entre
a cal
e a água,
lembra
o das estrelas
antes
de caírem.

Carlos de Oliveira, A leve Têmpera do Vento

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Cabo Verde



Lembrança de Manuel Bandeira num outono de Lisboa

“Meus pedestres semelhantes”,
escreveste; mas eu, baleeiro da fome
sob a unção do frio,
tão aéreo cicerone me fizeram
estes claros dias de outubro.

Um tostão de azul (coisa pouca
apenas p´ra com sul rimar)
nos tetos frios do outono
ao mais triste de mim
leva a trémula consolação da cor.

Nos pátios caligráficos, ruivos amores
reinvento (hermeneuta sou dos segredos
que soterra o tempo) e virentes acenos
à pura noiva imaginada.

Real, porém, a mulher longeva
vendendo hortaliças
na viela fagulhante de turistas.
(Eu também já estive pelas suíças,
mas a apanhar morangos e castiças).

E vendo assim Lisboa (so beautiful)
assalta-me a lembrança de um outro azul
— sob suas fímbrias plantei
renques de acácias e tabuletas alusivas;
sob seus desdoirados ramos
desamores lamentei,
que não sou amigo do rei,
nem cheganças com deuses hei.

Mas se é de sua lei
que, embora triste, seja altivo amigo
da grei, tal sina não maldigo;
talvez mesmo comigo diga:
grato estou a estes claros dias
em que das lágrimas fiz maravilhas.

                    José Luís Tavares


DIDATICA INCONSEGUIDA

Tu nunca viste um homem
subitamente triste
ao descobrir um tesouro ou paraíso
ou alguém com dor no peito
e um gume encostado ao coração
cuspindo riso pela boca
— Entretanto ensino-te caminhos
que não passam pela porta
de ninguém

e dizes que sou louco.

                                   Arménio Vieira



ÉRAMOS TU E EU (excerto)

Éramos eu e tu
Dentro de mim
Centenas de fantasmas compunham o espectáculo
E o medo
Todo o medo do mundo em câmara lenta nos meus olhos.

Mãos agarradas
Pulsos acariciados
Um afago nas faces.

Éramos tu e eu
Dentro de nós
Suores inundavam os olhos
Alagavam lençóis
Corriam para o mar.
As unhas revoltam-se e ferem a carne que as abriga.

Éramos tu e eu
Dentro de nós...
                                    Dina Salústio



quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Janeiro


9 de Janeiro

Desde que percebi que os animais gostam
 de histórias, passei a ler à janela.

Apareceu uma andorinha.
E ainda é inverno.

Afonso Cruz, O livro do ano