sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Cabo Verde



Lembrança de Manuel Bandeira num outono de Lisboa

“Meus pedestres semelhantes”,
escreveste; mas eu, baleeiro da fome
sob a unção do frio,
tão aéreo cicerone me fizeram
estes claros dias de outubro.

Um tostão de azul (coisa pouca
apenas p´ra com sul rimar)
nos tetos frios do outono
ao mais triste de mim
leva a trémula consolação da cor.

Nos pátios caligráficos, ruivos amores
reinvento (hermeneuta sou dos segredos
que soterra o tempo) e virentes acenos
à pura noiva imaginada.

Real, porém, a mulher longeva
vendendo hortaliças
na viela fagulhante de turistas.
(Eu também já estive pelas suíças,
mas a apanhar morangos e castiças).

E vendo assim Lisboa (so beautiful)
assalta-me a lembrança de um outro azul
— sob suas fímbrias plantei
renques de acácias e tabuletas alusivas;
sob seus desdoirados ramos
desamores lamentei,
que não sou amigo do rei,
nem cheganças com deuses hei.

Mas se é de sua lei
que, embora triste, seja altivo amigo
da grei, tal sina não maldigo;
talvez mesmo comigo diga:
grato estou a estes claros dias
em que das lágrimas fiz maravilhas.

                    José Luís Tavares


DIDATICA INCONSEGUIDA

Tu nunca viste um homem
subitamente triste
ao descobrir um tesouro ou paraíso
ou alguém com dor no peito
e um gume encostado ao coração
cuspindo riso pela boca
— Entretanto ensino-te caminhos
que não passam pela porta
de ninguém

e dizes que sou louco.

                                   Arménio Vieira



ÉRAMOS TU E EU (excerto)

Éramos eu e tu
Dentro de mim
Centenas de fantasmas compunham o espectáculo
E o medo
Todo o medo do mundo em câmara lenta nos meus olhos.

Mãos agarradas
Pulsos acariciados
Um afago nas faces.

Éramos tu e eu
Dentro de nós
Suores inundavam os olhos
Alagavam lençóis
Corriam para o mar.
As unhas revoltam-se e ferem a carne que as abriga.

Éramos tu e eu
Dentro de nós...
                                    Dina Salústio

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