Lembrança de Manuel Bandeira num outono de
Lisboa
“Meus pedestres semelhantes”,
escreveste; mas eu, baleeiro da fome
sob a unção do frio,
tão aéreo cicerone me fizeram
estes claros dias de outubro.
Um tostão de azul (coisa pouca
apenas p´ra com sul rimar)
nos tetos frios do outono
ao mais triste de mim
leva a trémula consolação da cor.
Nos pátios caligráficos, ruivos amores
reinvento (hermeneuta sou dos segredos
que soterra o tempo) e virentes acenos
à pura noiva imaginada.
Real, porém, a mulher longeva
vendendo hortaliças
na viela fagulhante de turistas.
(Eu também já estive pelas suíças,
mas a apanhar morangos e castiças).
E vendo assim Lisboa (so beautiful)
assalta-me a lembrança de um outro azul
— sob suas fímbrias plantei
renques de acácias e tabuletas alusivas;
sob seus desdoirados ramos
desamores lamentei,
que não sou amigo do rei,
nem cheganças com deuses hei.
Mas se é de sua lei
que, embora triste, seja altivo amigo
da grei, tal sina não maldigo;
talvez mesmo comigo diga:
grato estou a estes claros dias
em que das lágrimas fiz maravilhas.
José Luís Tavares
DIDATICA
INCONSEGUIDA
Tu nunca viste um homem
subitamente triste
ao descobrir um tesouro ou
paraíso
ou alguém com dor no
peito
e um gume encostado ao
coração
cuspindo riso pela boca
— Entretanto ensino-te
caminhos
que não passam pela
porta
de ninguém
e dizes que sou louco.
Arménio Vieira
ÉRAMOS
TU E EU (excerto)
Éramos eu e
tu
Dentro de
mim
Centenas de
fantasmas compunham o espectáculo
E o
medo
Todo o medo do
mundo em câmara lenta nos meus olhos.
Mãos
agarradas
Pulsos
acariciados
Um afago nas
faces.
Éramos tu e
eu
Dentro de
nós
Suores inundavam
os olhos
Alagavam
lençóis
Corriam para o
mar.
As unhas
revoltam-se e ferem a carne que as abriga.
Éramos tu e
eu
Dentro de
nós...
Dina Salústio
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