quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Os livros e a floresta

 

                 34

Não virem as páginas para baixo

dizia a minha mãe

as palavras viradas ao contrário têm vertigens

a tinta estraga-se como um mau leite

 

os livros que nós folheávamos vinham da floresta

da dor das árvores

do grito da casca que se prolongava sob a pele das páginas

 

Nós líamos na obscuridade de agosto

quando o céu se livrava das suas estrelas cadentes

e a noite

por falta de margem

se dilatava até à noite

 

Vénus Khoury Ghata, Líbano, 1937

       (a tradução, do francês, é minha)


segunda-feira, 29 de agosto de 2022

No elétrico 28, « Acusação ao princípio da tarde»

 



Viajo atrás do guarda-freio  um saco de livros na mão

o eléctrico quase cheio e na paragem da Sé lá saem

ao que diz o condutor e com ciência pura  os

                                                          carteiristas

muito nervoso aquele que saiu pela porta da frente

E ao dobrar a esquina da Catedral   subindo à luz

da Graça  insinua então o advogado dos passageiros

atirando na minha direção a nuca  e o polegar

                                                  dirigido também

mas à frente do peito resguardado

e contando por certo que eu não o visse   que andaria

                                                                    eu à cata

pois então das carteiras vizinhas

 

Meio mundo ficou de rosto para mim

e eu como se todo o mundo

 tivesse cristalizado no clarão da coisa insinuada

Nisto de carteiristas

o saber de experiência feito dos guarda-freios faz a lei

E posso reafirmá-lo porque chegando à Graça

e em pedindo explicações  a criatura lá foi dizendo que

se eu reagia por alguma coisa seria  Fiquei

a compreender melhor

o murro de Billy Budd no mestre de armas Claggart

na bela novela

de Herman Melville   De um eléctrico na Graça

ao navio Indomável ainda vai existindo a porra do

                                                          inexplicável

 

Abel Neves, 1956

sábado, 27 de agosto de 2022

Canções do rádio

 

r.c.

 

os grandes colecionadores de mantras pessoais não

saberão a metade/do que aprendi nas canções/é

verdade/nem saberão/descrever com tanta precisão/

aquela janela da bolha sabão/ meu bem eu li a barsa/

eu li a britannica/e quando sobrou tempo eu ouvi/

a sinfônica/eu cresci/sobrevivi/a privada de perto/

muitas vezes eu vi/mas a verdade é que/quase tudo

aprendi/ouvindo as canções do rádio/as canções do

rádio/quando meu bem nem/a verdadeira maionese/

puder me salvar/você sabe onde me encontrar/e se

a luz faltar/num cantinho do meu quarto/eu vou

estar/com um panasonic quatro pilhas AAA/ouvindo as

canções do rádio

 

Angélica Freitas, Brasil, 1973



quinta-feira, 25 de agosto de 2022

« Fala de Musurukutu»

 

FALA DE MUSURUKUTU

 

Rei me fizeram para governar a guerra
e do sangue da raça
me investi.

Perdi o reino e a graça de uma paz
em que reinava sem ter sido eleito.
A guerra está perdida:
para me encontrar agora
é procurar pastor.

Pastor que sou
ser rei não faz sentido e estar na vida
é depender da chuva
e não do mando.

Que não vos dê cuidado
a minha fuga.
Não fujo para reinar
porém para ter
o sol de novo às mãos
e o leite azedo.

 

 Ruy Duarte de Carvalho, 1941- 2010



quarta-feira, 24 de agosto de 2022

«Negra dor»

 

              Negra dor

 

 Negro é o desperdício de pus no sangue diário

 Negra também é a cor específica das máquinas de ferir

 E a dor é um prazer negro

 

 Negras são as manchas no solo

 De óleo humano queimado

 O óxido de espesso cansaço nos olhos dos gatos

 E a dor o miar entrecortado na escuridão

Na corrente de fogo

Na cinza dos dedos velhos no asfalto

Na cabeça cortada da criança na estrada

 

Negra dor

É também todo este fumo

Que a parede respira com pulmões de ferro

 

Ahmed Barakat, Marrocos (1960-1994)

   - a tradução, do inglês, é minha -



terça-feira, 23 de agosto de 2022

Noite


                                             As noites não são todas iguais.



 

domingo, 21 de agosto de 2022

Juramento dos caçadores do Mandê (1222)

  

Todas as vidas são uma vida.

Uma vida, é sabido, vem sempre antes de outra,

Mas uma vida não é mais «antiga» nem mais respeitável do que outra,

Tal como não é superior a outra.

Os caçadores declaram:

Se todas as vidas são uma vida,

Então, todo o mal causado a uma vida exige reparação.

Portanto,

Que ninguém ataque gratuitamente o seu vizinho,

Que ninguém faça mal ao seu próximo,

Que ninguém torture o seu semelhante.

Os caçadores declaram:

Que todos cuidem do seu próximo,

Que todos honrem os seus progenitores,

Que todos eduquem as crianças como é devido,

Que todos «acautelem» e zelem pelas necessidades da sua família.

Os caçadores declaram:

 Que todos cuidem da terra dos seus pais.

Por terra ou pátria, faso,

Entenda-se também, e sobretudo, os homens;

Porquanto «todos os países e terras que vejam os homens

      desaparecerem do seu solo logo se tornarão nostálgicos».

Os caçadores declaram:

A fome não é uma coisa boa,

A escravatura também não é uma coisa boa;

Não há calamidade maior do que a existência de tais coisas no mundo.

Enquanto guardarmos o arco e a aljava,

A fome, se porventura voltar a ameaçar-nos,

Não tornará a matar no Mande;

A guerra não tornará a destruir as aldeias

Para aí capturar escravos;

Assim, a partir de hoje, ninguém tornará a colocar o freio

           na boca do seu semelhante

Para ir vendê-lo;

Ninguém será maltratado,

E muito menos morto

Por ser filho de um escravo.

Os caçadores declaram:

A essência da escravatura termina hoje,

Dentro de todas as casas e de todas as fronteiras do Mandê;

                              (…)

 

Cantado pela confraria dos caçadores do reino mandinga,

                 Antigo Império do Mali, em 1222

Estas fotografias não foram tiradas por mim.
Esculturas de reis ou nobres mandê do sec. XIII.



sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Coisas não resolvidas no espaço e no tempo

 

Depois de Alepo

 

Aprendi a ler cedo.

Mas a verdade é: por vezes gostava que as letras

permanecessem desenhos por mais tempo, antes da

tirania das palavras aparecer sem convite, e

antes que outras línguas encontrassem na minha

                                              grande boca uma casa.

Não o digo literalmente.

Um dia, vamos voltar a Alepo, disseste tu.

Não o dizes literalmente.

Habibi, há quatro anos gritávamos por mudança,

                     e agora somos cidadãos de fronteiras.

Vamos da Turquia para o Líbano, para o Egito,

                             mas sem encontrarmos Alepo.

Temos cupões de alimentação, e, critérios de

                 assistência, e, empatia intermitente.

 

Já não escrevo mais poesia.

  

O barco está a afundar,

literalmente,

mas eu não quero sair deste quarto

Cheira a jasmim e tu sabes a liberdade.

 

            Jehan Bseiso

(tradução de Joana Santos e/ou André Simões)





quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Cancioneiro popular angolano

Não quero, não caso mais:

triste é ser-se viúva.

Fantasma pediu-me fogo

e morte pediu-me a vida.

 


Cachimbo emprestado

não sacia o vício;

marido alheio,

não acaba a viuvez.

 

Numa cova muito funda

ficou- se a Donga.

Palavrinha que ouvi da moça,

muitas saudades me deixou.

 


Tu, fidalga e peneirenta,

hás de parir numa caverna.

Visita-te o leão,

dão-te água os leopardos.

 


Amei-a

e ela disse-me que não.

Quando chegou ao mercado,

Maximiano Alves (escultura em bronze) 1916
vendeu as ancas pelo pão.

 

 


Acostumei-me à esteira,

não durmo no colchão.

 

 




Bem o tínhamos dito, fujamos,

somos geração de compra e venda.

Mãe que me trouxeste ao mundo,

vem cá ver:

estou partido como uyombe,*

reclinado sobre o joelho.

 


Deus não tem amigos,

a morte desconhece o miserável.

Para onde irei, depois da morte?

irei vaguear de galho em galho.

 

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Canções "umbundu"

 

Onde o coração vai batendo,

nasceu urso formigueiro.

Por que o lagarto meneia a cabeça,

é segredo do seu coração.

 

Em casa de minha mãe,

já estou muito tempo.

Tenho os seios maduros;

Vem buscar-me, José.

 

Formiguinha não tem fígado:

seu fígado pô-lo nas ancas.

Lindo é o seu amor.


 

Meu humbihumbi,*

levanta voo e vamos.

Coitado do tchimbamba*

que se arrasta no chão.

 

Teus companheiros voam,

levanta voo e vamos.

 Coitado do tchimbamba

que se arrasta no chão.



excertos de Cancioneiro popular angolano (subsídios),

                em língua umbundo, de Gonzaga Lambo.




segunda-feira, 15 de agosto de 2022

5 landay do exílio

Grande Deus dos exilados!

Quanto durará a vida nestas planuras áridas?

 

Pelo meu rosto resvalam as lágrimas,

não consigo esquecer os cumes nevados das montanhas de Cabul.

 

Tenho na mão uma flor que se fana

não sei a quem dá-la nesta terra estranha.

 

Que podes fazer senão lutar?

Submetido não passarias do escravo de um escravo.

 

Na noite negra que nos separa,

com uma tocha na mão, procuro o meu caminho.


  Notas:1- a fotografia não é minha. A tradução sim.

        2- O Afeganistão esteve ocupado por ingleses, russos

           e americanos; atualmente tem no governo os taliban

            e vive" uma crise económica sem precedentes". 




 

domingo, 14 de agosto de 2022

* 5 pequenas serpentes venenosas

 

5 Landay*

 

Em segredo ardo, em segredo choro,

sou a mulher pachtun que não pode revelar o seu amor.

 

Num instante serias um montão de cinzas

se lançasse sobre ti o meu olhar incendiado.

 

A noite passada tive um sonho que se realizou:

o meu temeroso amante tomou-me nos seus braços em pleno dia.

 

Que outra coisa pode fazer senão comportar-se como um herói

pois sob a sua cabeça coloco a almofada dos meus brancos braços?


Se me beijares a boca, deves dar-me o coração.

Os que saem da minha cama, como prenda, deixam o coração.


*dísticos feitos e cantados em coletivo, ainda hoje, por mulheres pachtun,

 (do Afeganistão e da diáspora), ritmados por um tambor.

                                - a tradução, do castelhano, é minha.-


sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Traições

 









(...) Traduzir nunca é simples. Traduzir é trair de uma forma imprecisa,

 é ser intermediário em negócios escuros, ajustar o preço de uma frase

 por uma outra. Traduzir é uma das únicas atividades humanas onde se

 é obrigado a mentir nas minúcias para repor a verdade por atacado.

Traduzir é assumir o risco de compreender melhor do que os outros

 que a verdade da palavra não é única, mas dupla, quiçá tripla,

 quádrupla ou quíntupla. Traduzir é afastar-se da verdade de 

Deus que, como cada um sabe ou acredita saber, é una. (...)


                                David Diop, in Frère d’âme

                            -a tradução, do francês, foi feita por mim. -




terça-feira, 9 de agosto de 2022

O x do problema

 

(…) Os acontecimentos que surpreendem o homem foram todos vividos

 por outros homens antes dele. Todas as potencialidades humanas foram

experimentadas. Nada do que nos sucede na terra, por mais grave ou

 vantajoso que seja, é novo. Mas o que sentimos é sempre novo porque

 cada homem é único, como cada folha de uma mesma árvore é única. O

  homem partilha com outros homens a mesma seiva, mas é de modo

 diferente que se alimenta dela. Mesmo se o novo não é verdadeiramente

 novo, mantém-se sempre novo para aqueles que sem cessar vêm encalhar

 no mundo, geração após geração, vaga após vaga. (…)

                                           David Diop, Frère d’âme

                                                         (traduzido, do francês, por mim)






domingo, 7 de agosto de 2022

«Lullaby»

 

Canção de embalar

 

Descansa agora. Foram

demasiadas emoções.

 

O crepúsculo, depois a noitinha. No quarto

cintilam pirilampos, aqui, acolá, aqui, acolá,

e a funda doçura do Verão entra pela janela aberta.

 

Não penses mais nestas coisas.

Ouve-me a respirar, ouve-te a respirar

como os pirilampos, cada pequeno sopro

é um clarão onde aparece o mundo.

 

Já cantei muito para ti na noite de Verão.

Hei de conquistar-te, no final: o mundo não pode conceder-te

esta visão contínua.

 

Deves aprender a amar-me. Os humanos devem aprender a amar

o silêncio e o escuro.

 

Louise Gluck, EUA, 1943

(tradução de Ana Luísa Amaral)


sábado, 6 de agosto de 2022