quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

«A minha gente»

 

A minha gente

Parece ter brotado

Desta terra seca

 

Brotada dos vulcões

Nascida de uma concha

Que o mar depositou na areia.

 

A minha gente

Tem rugas de olhar o longe

Rugas de rir

De sofrer

E de morrer

As de morrer são mais bonitas

Provam o renascer

A cada dia.

 

Eileen Barbosa, Senegal, 1982



quinta-feira, 24 de novembro de 2022

« Poeta que sou»

                                                            Poeta que sou

 

Tem dias que estou botânica, afoita à flor, assim rosa.

Tem dias que estou em doida, adormecida, de ambulante.

Tem dias que estou radioactiva, átomos de versos, bomba.

Animal, às vezes de lasciva, outras vezes em toca e troca.

Mulher, que dentro me passeia, em sua estranha prosa.

Poeta que se evade da matéria, em tanta pedra, sou eu.

Poeta dos dias em que estou, afoita à dor, enfim rosa…

 

Margarida Fontes, Cabo Verde (ilha do Fogo), 1975



sábado, 19 de novembro de 2022

«Regresso»

 

Regresso

 

Mamãe Velha, venha ouvir comigo

O bater da chuva lá no seu portão.

É um bater de amigo

Que vibra dentro do meu coração

 

A chuva amiga, Mamãe Velha, a chuva,

Que há tanto tempo não batia assim…

Ouvi dizer que a Cidade - Velha

- a ilha toda -

Em poucos dias já virou jardim…

 

Dizem que o campo se cobriu de verde

Da cor mais bela porque é a cor da esp’rança

Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde.

- É a tempestade que virou bonança…

 

Venha comigo, Mamãe Velha, venha

Recobre a força e chegue-se ao portão

A chuva amiga já falou mantenha

E bate dentro do meu coração!

 

Amílcar Cabral, Guiné-Bissau (1924-1973)




quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Prece


Afasta-se o templo com o pé tão piedoso de paquiderme

o colo de júbilo em verdor

e as mil tetas rosadas por sobre o ombro

à sede infantil do céu atiradas

Curvado sobre a sandália o peregrino sorri

Que esta noite se avivem as trevas

pois a via láctea será


                           S.K








sexta-feira, 11 de novembro de 2022

o outono dos dias

 

Serpentinas douradas

os dias de outono

esvoaçam furtivos

fogem da minha mão

Peras sumarentas

crisântemos castanhas

muitas árvores já despidas

húmido tapete de cor

cobrindo o chão

cogumelos crescendo

terra lenha madeira

a rescender

a lua já rasga as nuvens

alguém atiça a lareira

longas serão as noites

 

Serpentinas douradas

os dias de outono

fogem da minha mão





segunda-feira, 7 de novembro de 2022

«Licencia para ejercer la libertad»

  

Todo documento es falso.

La licencia original no requiere autorización ni firma.
Por huella
bastan tus pasos sobre el césped mojado,
por sello
la marca que deja tu risa en lugares prohibidos.

No tiene fecha de vencimiento,
no se lleva en el bolso
ni colgada del cuello como una credencial.

Se lleva en la frente
como la llevan las águilas y los amaneceres
como la llevan los grandes poemas
que alumbran el camino a través de estas cavernas.

 

Denise Vargas, Honduras (1974)



quarta-feira, 26 de outubro de 2022

«Tanto ser diverso»

 

Tanto ser diverso (tantos deuses e demónios

este mais ávido que aquele) é um homem

 

(tão facilmente um se esconde no outro;

e no entanto, cada um, sendo todos, não escapa de ninguém)

 

tumulto tão vasto é o desejo mais simples:

tão cruel extermínio a esperança

mais inocente (tão profundo o espírito do corpo,

tão lúcido isso a que a vigília chama sonho)

 

tão solitário e tão jamais o homem só

o seu mais breve pulsar dura um ano terrestre

os seus mais longos anos o pulsar de um sol;

a sua mais leve quietude transporta- o à estrela mais jovem

 

Como poderia esse excesso que a si mesmo se

                                                            denomina Eu

atrever-se a compreender o seu inumerável Quem?

 

E. E. Cummings, EUA, (1894-1962)

   - transversão de Zetho C. Gonçalves-



quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Submersibilidade

 

Livres enfim das

    andorinhas

mosquitos e moscas

sucumbem agora

nas inesperadas águas

de um rio atmosférico





sexta-feira, 14 de outubro de 2022

história sur-real

quando recebeu suas cartas

 da corte pouco sabia

pelo rei que

lhe escrevia

maria se embevecia

jovens um e outro amavam

a música a escrita

o amor

 perdera ela o irmão que

mais tarde morreria

   num torneio

o rei irmãos não tinha

mas uma irmã lhe falecia

entretanto a procurou

  num volteio

irmãos facilmente encontrou

 nas semelhanças

que com eles partilhava

 maria

aparecida que foi

semelhante lhe pareceu

dos dois 1 único eu

proximidade sem véu

laços e alguns nós

no ar

no mar

se mantiveram

mas de sangue não

só no papel

- quiçá no ecrã

nos seus genes porém

o rei inscreveu essa irmã

e agora sem pai nem mãe

se doam

sem que isso doa

desse espesso

sangue- ímã


 

domingo, 9 de outubro de 2022

Palmas

 

Palmas 


Palmas para nós que as almas se afogam em águas calmas

Plumas onde as estrelas se encontram nas discotecas

Sem cuecas amizades alforrecas deitado e marreca coitado

Pretéritas usadas moedas lançadas ao fundo do nada molhadas

E secas namorada e cansada dum poeta abjecto queimado num altar

 

Palmas para nós dores d'almas ressacas opacas

Sem ondas nem entregas mãos magras

Plumas sem penas das arquitetas já só há palavras

Ocas cimentadas em maquetas manchadas em tretas

Secretas projetadas já cansadas de nós

 

                 Rui Reininho, (1955)





quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Entardecer

fotografia de Fotografia de J.de Matos Alves

 

rútila cabeça

sob pálido guarda-sol

arrebol

sob o metal da ponte

ocre lua

afundando-se no rio


segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A processar Poeiras...


tempestades de areia no Saara

trazem-nos de novo a poeira

anuncia

a meteorologia

olhos fechados aos lances

ouvidos treinados

em detetar mentiras

- sereia quem assim canta-

protejo a garganta

sacudo em seguida a poeira

levanto-a pouco depois

um grão no deserto

um grão no universo

são 2022…….. 



 

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

orvalho de outono

 

  «Já não quero ter nada a ver

com este mundo sórdido»

          e  desprende-se a gota de orvalho

 

Issa, Japão (1763-1827)






quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Água minguante

 

 Uma a uma

 as folhas

 caíam

prematuramente

 das árvores

 Em longos renques

 acamavam-se

em julho

entre passeio e estrada

Morriam à mingua

de água.



segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Assassina?!!...

 coelho


a rapariga

com um coelho bordado

na camisola de lã

é uma assassina

preparou a morte de uma besta

que a perseguia:

 

num sítio isolado

espetou-lhe a faca

no peito

vinte vezes

depois

enfiou-lhe um cigarro na boca

e sobre o sexo deixou

um papel escrito:

“vingança!”

 

agora

está ali a um canto

no pátio da cadeia

tímida

a morder os lábios

a desviar a conversa

a olhar para as nuvens

com a sua camisola de lã

com um coelho bordado


Américo Rodrigues, 1961



segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Mapeações

 

Quando eu desaparecer do mapa

morarás talvez na cabana

ao de leve imaginada

no meio da mata porém

desejo dos sem vintém

pássaros na alba te despertarão

dessa sonolência insana

que te assalta e te esvazia          

 sangue cereja

 as feridas das tuas mãos

milho e oliveiras plantarão

durante o dia

grilos e cigarras

em cio te acompanharão

e tu os farás mansamente cantar

encolhendo as tuas garras

que só servem para caçar

 no lampejo dos noctilúcios

 no vazio deixado por estrela cadente

    e cansada de céu

hás de lembrar-te

muito vagamente

do que é meu

que em cinzas descanso

finalmente

            até renascer

 num muito outro

     trilo

 ou

 na Grécia

ou

no Nilo.



quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Os livros e a floresta

 

                 34

Não virem as páginas para baixo

dizia a minha mãe

as palavras viradas ao contrário têm vertigens

a tinta estraga-se como um mau leite

 

os livros que nós folheávamos vinham da floresta

da dor das árvores

do grito da casca que se prolongava sob a pele das páginas

 

Nós líamos na obscuridade de agosto

quando o céu se livrava das suas estrelas cadentes

e a noite

por falta de margem

se dilatava até à noite

 

Vénus Khoury Ghata, Líbano, 1937

       (a tradução, do francês, é minha)


segunda-feira, 29 de agosto de 2022

No elétrico 28, « Acusação ao princípio da tarde»

 



Viajo atrás do guarda-freio  um saco de livros na mão

o eléctrico quase cheio e na paragem da Sé lá saem

ao que diz o condutor e com ciência pura  os

                                                          carteiristas

muito nervoso aquele que saiu pela porta da frente

E ao dobrar a esquina da Catedral   subindo à luz

da Graça  insinua então o advogado dos passageiros

atirando na minha direção a nuca  e o polegar

                                                  dirigido também

mas à frente do peito resguardado

e contando por certo que eu não o visse   que andaria

                                                                    eu à cata

pois então das carteiras vizinhas

 

Meio mundo ficou de rosto para mim

e eu como se todo o mundo

 tivesse cristalizado no clarão da coisa insinuada

Nisto de carteiristas

o saber de experiência feito dos guarda-freios faz a lei

E posso reafirmá-lo porque chegando à Graça

e em pedindo explicações  a criatura lá foi dizendo que

se eu reagia por alguma coisa seria  Fiquei

a compreender melhor

o murro de Billy Budd no mestre de armas Claggart

na bela novela

de Herman Melville   De um eléctrico na Graça

ao navio Indomável ainda vai existindo a porra do

                                                          inexplicável

 

Abel Neves, 1956

sábado, 27 de agosto de 2022

Canções do rádio

 

r.c.

 

os grandes colecionadores de mantras pessoais não

saberão a metade/do que aprendi nas canções/é

verdade/nem saberão/descrever com tanta precisão/

aquela janela da bolha sabão/ meu bem eu li a barsa/

eu li a britannica/e quando sobrou tempo eu ouvi/

a sinfônica/eu cresci/sobrevivi/a privada de perto/

muitas vezes eu vi/mas a verdade é que/quase tudo

aprendi/ouvindo as canções do rádio/as canções do

rádio/quando meu bem nem/a verdadeira maionese/

puder me salvar/você sabe onde me encontrar/e se

a luz faltar/num cantinho do meu quarto/eu vou

estar/com um panasonic quatro pilhas AAA/ouvindo as

canções do rádio

 

Angélica Freitas, Brasil, 1973



quinta-feira, 25 de agosto de 2022

« Fala de Musurukutu»

 

FALA DE MUSURUKUTU

 

Rei me fizeram para governar a guerra
e do sangue da raça
me investi.

Perdi o reino e a graça de uma paz
em que reinava sem ter sido eleito.
A guerra está perdida:
para me encontrar agora
é procurar pastor.

Pastor que sou
ser rei não faz sentido e estar na vida
é depender da chuva
e não do mando.

Que não vos dê cuidado
a minha fuga.
Não fujo para reinar
porém para ter
o sol de novo às mãos
e o leite azedo.

 

 Ruy Duarte de Carvalho, 1941- 2010



quarta-feira, 24 de agosto de 2022

«Negra dor»

 

              Negra dor

 

 Negro é o desperdício de pus no sangue diário

 Negra também é a cor específica das máquinas de ferir

 E a dor é um prazer negro

 

 Negras são as manchas no solo

 De óleo humano queimado

 O óxido de espesso cansaço nos olhos dos gatos

 E a dor o miar entrecortado na escuridão

Na corrente de fogo

Na cinza dos dedos velhos no asfalto

Na cabeça cortada da criança na estrada

 

Negra dor

É também todo este fumo

Que a parede respira com pulmões de ferro

 

Ahmed Barakat, Marrocos (1960-1994)

   - a tradução, do inglês, é minha -



terça-feira, 23 de agosto de 2022

Noite


                                             As noites não são todas iguais.



 

domingo, 21 de agosto de 2022

Juramento dos caçadores do Mandê (1222)

  

Todas as vidas são uma vida.

Uma vida, é sabido, vem sempre antes de outra,

Mas uma vida não é mais «antiga» nem mais respeitável do que outra,

Tal como não é superior a outra.

Os caçadores declaram:

Se todas as vidas são uma vida,

Então, todo o mal causado a uma vida exige reparação.

Portanto,

Que ninguém ataque gratuitamente o seu vizinho,

Que ninguém faça mal ao seu próximo,

Que ninguém torture o seu semelhante.

Os caçadores declaram:

Que todos cuidem do seu próximo,

Que todos honrem os seus progenitores,

Que todos eduquem as crianças como é devido,

Que todos «acautelem» e zelem pelas necessidades da sua família.

Os caçadores declaram:

 Que todos cuidem da terra dos seus pais.

Por terra ou pátria, faso,

Entenda-se também, e sobretudo, os homens;

Porquanto «todos os países e terras que vejam os homens

      desaparecerem do seu solo logo se tornarão nostálgicos».

Os caçadores declaram:

A fome não é uma coisa boa,

A escravatura também não é uma coisa boa;

Não há calamidade maior do que a existência de tais coisas no mundo.

Enquanto guardarmos o arco e a aljava,

A fome, se porventura voltar a ameaçar-nos,

Não tornará a matar no Mande;

A guerra não tornará a destruir as aldeias

Para aí capturar escravos;

Assim, a partir de hoje, ninguém tornará a colocar o freio

           na boca do seu semelhante

Para ir vendê-lo;

Ninguém será maltratado,

E muito menos morto

Por ser filho de um escravo.

Os caçadores declaram:

A essência da escravatura termina hoje,

Dentro de todas as casas e de todas as fronteiras do Mandê;

                              (…)

 

Cantado pela confraria dos caçadores do reino mandinga,

                 Antigo Império do Mali, em 1222

Estas fotografias não foram tiradas por mim.
Esculturas de reis ou nobres mandê do sec. XIII.



sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Coisas não resolvidas no espaço e no tempo

 

Depois de Alepo

 

Aprendi a ler cedo.

Mas a verdade é: por vezes gostava que as letras

permanecessem desenhos por mais tempo, antes da

tirania das palavras aparecer sem convite, e

antes que outras línguas encontrassem na minha

                                              grande boca uma casa.

Não o digo literalmente.

Um dia, vamos voltar a Alepo, disseste tu.

Não o dizes literalmente.

Habibi, há quatro anos gritávamos por mudança,

                     e agora somos cidadãos de fronteiras.

Vamos da Turquia para o Líbano, para o Egito,

                             mas sem encontrarmos Alepo.

Temos cupões de alimentação, e, critérios de

                 assistência, e, empatia intermitente.

 

Já não escrevo mais poesia.

  

O barco está a afundar,

literalmente,

mas eu não quero sair deste quarto

Cheira a jasmim e tu sabes a liberdade.

 

            Jehan Bseiso

(tradução de Joana Santos e/ou André Simões)





quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Cancioneiro popular angolano

Não quero, não caso mais:

triste é ser-se viúva.

Fantasma pediu-me fogo

e morte pediu-me a vida.

 


Cachimbo emprestado

não sacia o vício;

marido alheio,

não acaba a viuvez.

 

Numa cova muito funda

ficou- se a Donga.

Palavrinha que ouvi da moça,

muitas saudades me deixou.

 


Tu, fidalga e peneirenta,

hás de parir numa caverna.

Visita-te o leão,

dão-te água os leopardos.

 


Amei-a

e ela disse-me que não.

Quando chegou ao mercado,

Maximiano Alves (escultura em bronze) 1916
vendeu as ancas pelo pão.

 

 


Acostumei-me à esteira,

não durmo no colchão.

 

 




Bem o tínhamos dito, fujamos,

somos geração de compra e venda.

Mãe que me trouxeste ao mundo,

vem cá ver:

estou partido como uyombe,*

reclinado sobre o joelho.

 


Deus não tem amigos,

a morte desconhece o miserável.

Para onde irei, depois da morte?

irei vaguear de galho em galho.

 

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Canções "umbundu"

 

Onde o coração vai batendo,

nasceu urso formigueiro.

Por que o lagarto meneia a cabeça,

é segredo do seu coração.

 

Em casa de minha mãe,

já estou muito tempo.

Tenho os seios maduros;

Vem buscar-me, José.

 

Formiguinha não tem fígado:

seu fígado pô-lo nas ancas.

Lindo é o seu amor.


 

Meu humbihumbi,*

levanta voo e vamos.

Coitado do tchimbamba*

que se arrasta no chão.

 

Teus companheiros voam,

levanta voo e vamos.

 Coitado do tchimbamba

que se arrasta no chão.



excertos de Cancioneiro popular angolano (subsídios),

                em língua umbundo, de Gonzaga Lambo.




segunda-feira, 15 de agosto de 2022

5 landay do exílio

Grande Deus dos exilados!

Quanto durará a vida nestas planuras áridas?

 

Pelo meu rosto resvalam as lágrimas,

não consigo esquecer os cumes nevados das montanhas de Cabul.

 

Tenho na mão uma flor que se fana

não sei a quem dá-la nesta terra estranha.

 

Que podes fazer senão lutar?

Submetido não passarias do escravo de um escravo.

 

Na noite negra que nos separa,

com uma tocha na mão, procuro o meu caminho.


  Notas:1- a fotografia não é minha. A tradução sim.

        2- O Afeganistão esteve ocupado por ingleses, russos

           e americanos; atualmente tem no governo os taliban

            e vive" uma crise económica sem precedentes". 




 

domingo, 14 de agosto de 2022

* 5 pequenas serpentes venenosas

 

5 Landay*

 

Em segredo ardo, em segredo choro,

sou a mulher pachtun que não pode revelar o seu amor.

 

Num instante serias um montão de cinzas

se lançasse sobre ti o meu olhar incendiado.

 

A noite passada tive um sonho que se realizou:

o meu temeroso amante tomou-me nos seus braços em pleno dia.

 

Que outra coisa pode fazer senão comportar-se como um herói

pois sob a sua cabeça coloco a almofada dos meus brancos braços?


Se me beijares a boca, deves dar-me o coração.

Os que saem da minha cama, como prenda, deixam o coração.


*dísticos feitos e cantados em coletivo, ainda hoje, por mulheres pachtun,

 (do Afeganistão e da diáspora), ritmados por um tambor.

                                - a tradução, do castelhano, é minha.-


sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Traições

 









(...) Traduzir nunca é simples. Traduzir é trair de uma forma imprecisa,

 é ser intermediário em negócios escuros, ajustar o preço de uma frase

 por uma outra. Traduzir é uma das únicas atividades humanas onde se

 é obrigado a mentir nas minúcias para repor a verdade por atacado.

Traduzir é assumir o risco de compreender melhor do que os outros

 que a verdade da palavra não é única, mas dupla, quiçá tripla,

 quádrupla ou quíntupla. Traduzir é afastar-se da verdade de 

Deus que, como cada um sabe ou acredita saber, é una. (...)


                                David Diop, in Frère d’âme

                            -a tradução, do francês, foi feita por mim. -




terça-feira, 9 de agosto de 2022

O x do problema

 

(…) Os acontecimentos que surpreendem o homem foram todos vividos

 por outros homens antes dele. Todas as potencialidades humanas foram

experimentadas. Nada do que nos sucede na terra, por mais grave ou

 vantajoso que seja, é novo. Mas o que sentimos é sempre novo porque

 cada homem é único, como cada folha de uma mesma árvore é única. O

  homem partilha com outros homens a mesma seiva, mas é de modo

 diferente que se alimenta dela. Mesmo se o novo não é verdadeiramente

 novo, mantém-se sempre novo para aqueles que sem cessar vêm encalhar

 no mundo, geração após geração, vaga após vaga. (…)

                                           David Diop, Frère d’âme

                                                         (traduzido, do francês, por mim)






domingo, 7 de agosto de 2022

«Lullaby»

 

Canção de embalar

 

Descansa agora. Foram

demasiadas emoções.

 

O crepúsculo, depois a noitinha. No quarto

cintilam pirilampos, aqui, acolá, aqui, acolá,

e a funda doçura do Verão entra pela janela aberta.

 

Não penses mais nestas coisas.

Ouve-me a respirar, ouve-te a respirar

como os pirilampos, cada pequeno sopro

é um clarão onde aparece o mundo.

 

Já cantei muito para ti na noite de Verão.

Hei de conquistar-te, no final: o mundo não pode conceder-te

esta visão contínua.

 

Deves aprender a amar-me. Os humanos devem aprender a amar

o silêncio e o escuro.

 

Louise Gluck, EUA, 1943

(tradução de Ana Luísa Amaral)


sábado, 6 de agosto de 2022

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Bósnia

As notícias misturam-se como agulhas

Despejadas no meu cérebro

Pela mão cega do comentador;

Tenho medo.

 Oito horas há em que as declarações cruéis

Se sucedem no meu recetor;

Muito alto, o sol brilha.

 

O céu está ligeiramente verde,

Como uma iluminação de piscina;

O café é amargo,

Em todo a parte se assassina;

O céu só ilumina ruínas.


Michel Houellebecq, França, 1956

(a tradução, do francês, foi feita por mim)



 

domingo, 24 de julho de 2022

"A canção da fome"

 

A canção da fome

 

Prezado senhor e rei,

Sabes a notícia grada?

Segunda comemos pouco,

Terça não comemos nada.

 

Quarta sofremos miséria,

E quinta passámos fome;

Na sexta quase nos fomos –

Não se aguenta quem não come!

 

Por isso vê se no sábado

Mandas cozer o pãozinho,

Senão no domingo, ó rei,

Vamos comer-te inteirinho!

 

Georg Weerth, Alemanha (1822-1856)

          (tradução de João Barrento)




sexta-feira, 1 de julho de 2022

Mar. Meio da manhã

 

Mar. Manhã

 

Parece ser um ente apenas

Este correr da onda do mar,

Como uma cobra que em serenas

Dobras se alongue a colear

 

Unido e vasto e interminável

No são sossego azul do sol,

Arfa com um mover-se estável

O oceano ébrio de arrebol.

 

Fernando Pessoa, (1888-1935)